O Velho E A Flor

Por céus e mares eu andei
Vi um poeta e vi um rei
Na esperança de saber o que é o amor
Ninguém sabia me dizer

E eu já queria até morrer
Quando um velhinho com uma flor assim falou:
O amor é o carinho
É o espinho que não se vê em cada flor

É a vida quando
Chega sangrando
Aberta em pétalas de amor

Vinícius de Moraes

Fernando Pessoa : Cada um

Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.

Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
Que a Sorte nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.

Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.

Ricardo Reis

Estâncias para música

Alegria não há que o mundo dê, como a que tira.
Quando, do pensamento de antes, a paixão expira
Na triste decadência do sentir;

Não é na jovem face apenas o rubor
Que esmaia rápido, porém do pensamento a flor
Vai-se antes de que a própria juventude possa ir.
Alguns cuja alma bóia no naufrágio da ventura

Aos escolhos da culpa ou mar do excesso são levados;
O ímã da rota foi-se, ou só e em vão aponta a obscura
Praia que nunca atingirão os panos lacerados.
Então, frio mortal da alma, como a noite desce;

Não sente ela a dor de outrem, nem a sua ousa sonhar;
toda a fonte do pranto, o frio a veio enregelar;
Brilham ainda os olhos: é o gelo que aparece.
Dos lábios flua o espírito, e a alegria o peito invada,

Na meia-noite já sem esperança de repouso:
É como na hera em torno de uma torre já arruinada,
Verde por fora, e fresca, mas por baixo cinza anoso.
Pudesse eu me sentir ou ser como em horas passadas,

Ou como outrora sobre cenas idas chorar tanto;
Parecem doces no deserto as fontes, se salgadas:
No ermo da vida assim seria para mim o pranto.

Lord Byron

Soneto antigo

Responder a perguntas não respondo.
Perguntas impossíveis não pergunto.
Só do que sei de mim aos outros conto:
de mim, atravessada pelo mundo.

Toda a minha experiência, o meu estudo,
sou eu mesma que, em solidão paciente,
recolho do que em mim observo e escuto
muda lição, que ninguém mais entende.

O que sou vale mais do que o meu canto.
Apenas em linguagem vou dizendo
caminhos invisíveis por onde ando.

Tudo é secreto e de remoto exemplo.
Todos ouvimos, longe, o apelo do Anjo.
E todos somos pura flor de vento.

Cecília Meireles

Nel mezzo del camim…

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E alma de sonhos povoada eu tinha…

E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje segues de novo… Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.


E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.

Olavo Bilac

Dizeres íntimos

É tão triste morrer na minha idade!
E vou ver os meus olhos, penitentes
Vestidinhos de roxo, como crentes
Do soturno convento da Saudade!

E logo vou olhar (com que ansiedade!…)
As minhas mãos esguias, languescentes,
Mãos de brancos dedos, uns bebés doentes
Que hão-de morrer em plena mocidade!

E ser-se novo é ter-se o Paraíso
É ter-se a estrada larga, ao sol, florida,
Aonde tudo é luz e graça e riso!

E os meus vinte e três anos…(Sou tão nova!)
Dizem baixinho a rir "Que linda a vida!…"
Responde a minha Dor: "Que linda a cova!"

Florbela Espanca

É Urgente

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,

alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,

é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz

impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

Eugénio de Andrade

O amor que sinto

O amor que sinto
é um labirinto.
Nele me perdi
com o coração
cheio de ter fome
do mundo e de ti
(sabes o teu nome),
sombra necessária
de um Sol que não vejo,
onde cabe o pária,
a Revolução
e a Reforma Agrária
sonho do Alentejo.
Só assim me pinto
neste Amor que sinto.
Amor que me fere,
chame-se mulher,
onda de veludo,
pátria mal-amada,
chame-se "amar nada"
chame-se "amar tudo".
E porque não minto
sou um labirinto.

 

José Gomes Ferreira

Linhas Sobre a Cerveja

Cheio de espuma e âmbar misturados
Esvaziarei este copo novamente
Visões as mais hilariantes embarafustam
Pela alcova de meu cérebro

Pensamentos os mais curiosos fantasias as mais extravagantes
Ganham vida e se dissipam;
O que me importa o passar das horas?
Hoje estou tomando cerveja.

Edgar Allan Poe

Por que me falas nesse idioma?

Por que me falas nesse idioma? perguntei-lhe, sonhando.
Em qualquer língua se entende essa palavra.
Sem qualquer língua.
O sangue sabe-o.

Uma inteligência esparsa aprende
esse convite inadiável.
Búzios somos, moendo a vida
inteira essa música incessante.
Morte, morte.

Levamos toda a vida morrendo em surdina.
No trabalho, no amor, acordados, em sonho.
A vida é a vigilância da morte,
até que o seu fogo veemente nos consuma
sem a consumir.

Cecília Meireles

 

Amor

MULHER, teria sido teu filho por beber
o leite dos teus seios como um manancial,
por te olhar e te sentir ao meu lado e ter
tido em teu riso de ouro uma voz essencial.

Por te sentir em minhas veias um Deus no rio
e te adorar nos tristes ossos de pó e cal,
porque teu ser passou sem pena e sem ter vício
saindo na estrofe pura – limpo desse mal –.

Como eu saberia te amar, mulher, saberia
amar, e amar, ninguém amou assim jamais!

Morrer e no entanto
amar-te mais.

E no entanto
amar-te mais
e mais.

Pablo Neruda

Madredeus – O sonho

 

Quem contar
um sonho que sonhou
não conta tudo o que encontrou
Contar om sonho é proibido
Eu sonhei
um sonho com amor
e uma janela e uma flor
uma fonte de água e o meu amigo
E não havia mais nada…
só nós, a luz, e mais nada…"
Ali morou o amor
Amor,
amor que trago em segredo
num sonho que não vou contar
e cada dia é mais sentido
Amor,
eu tenho amor bem escondido
num sonho que não sei contar
e guardarei sempre comigo

Foi um momento

Foi um momento
O em que pousaste
Sobre o meu braço,
Num movimento

Mais de cansaço
Que pensamento,
A tua mão
E a retiraste.

Senti ou não?
Não sei. Mas lembro
E sinto ainda
Qualquer memória
Fixa e corpórea

Onde pousaste
A mão que teve
Qualquer sentido
Incompreendido,

Mas tão de leve!…
Tudo isto é nada,
Mas numa estrada
Como é a vida

Há uma coisa
Incompreendida…
Sei eu se quando
A tua mão

Senti pousando
Sobre o meu braço,
E um pouco, um pouco,
No coração,

Não houve um ritmo
Novo no espaço?
Como se tu,
Sem o querer,

Em mim tocasses
Para dizer
Qualquer mistério,
Súbito e etéreo,

Que nem soubesses
Que tinha ser.
Assim a brisa
Nos ramos diz

Sem o saber
Uma imprecisa
Coisa feliz.

Fernando Pessoa

Canção do vento e da minha vida

O vento varria as folhas,
O vento varria os frutos,
O vento varria as flores…
E a minha vida ficava

Cada vez mais cheia
De frutos, de flores, de folhas.
O vento varria as luzes,
O vento varria as músicas,

O vento varria os aromas…
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De aromas, de estrelas, de cânticos.

O vento varria os sonhos
E varria as amizades…
O vento varria as mulheres…
E a minha vida ficava

Cada vez mais cheia
De afetos e de mulheres.
O vento varria os meses
E varria os teus sorrisos…

O vento varria tudo!
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De tudo.


Manuel Bandeira

Tão bom viver dia a dia…

“Tão bom viver dia a dia…
A vida assim, jamais cansa…

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu…

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência… esperança…

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.
Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!
E sem nenhuma lembrança

Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas…"

Mario Quintana

As amoras

O meu país sabe as amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,

mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo

me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.

Sofia de Mello Breyner

O Castelo de Chapultepec

O Castelo de Chapultepec

O chamado Castelo de Chapultepec (em castelhano: Castillo de Chapultepec) é um palácio situado na colina de Chapultepec, na Cidade do México, no México.

Na cota de 2.325 metros acima do nível do mar, integra o Parque de Chapultepec. Em nahuatl, Chapultepec significa "colina do gafanhoto".

A construção deste edifício data de 1795, durante a administração do vice-rei Bernardo de Gálvez. Foi projectado como palácio de recreio para os vice-reis, embora os elevados custos envolvidos na sua construção tenham impossibilitado a sua conclusão.

Em 1833, em plena administração do presidente Anastasio Bustamante, depois do México conseguir a sua independência, o antigo palácio vice-real foi convertido em Colégio Militar.

Posteriormente, durante a Guerra Mexicano-Americana, em 1847, seis heróicos cadetes militares, de idades entre os 14 e os 20 anos, lutaram até à morte contra os invasores do Exército dos Estados Unidos da América; um deles, Juan Escutia, embrulhou-se na bandeira mexicana e saltou para morte, em detrimento da sua captura. Hoje são recordados como os Niños Héroes (Rapazes Heróis), ou os "Cadetes Heróicos" (ver batalha de Chapultepec), e homenageados em mármore branco no monumento à entrada do parque.

Desde 1858 até 1939, as assoalhadas do castelo conexas com o jardim suspenso funcionaram como residência oficial dos governadores do México.

Foi transformado no Museu de História Nacional do México desde 31 de Dezembro de 1938, por decreto-lei do presidente Lázaro Cárdenas.

(Fonte: Wikipedia)

Chovem duas chuvas

Chovem duas chuvas:
de água e de jasmins
por estes jardins
de flores e de nuvens.

Sobem dois perfumes
por estes jardins:
de terra e jasmins,
de flores e chuvas.

E os jasmins são chuvas
e as chuvas, jasmins,
por estes jardins
de perfume e nuvens.

Cecília Meireles

Vivemos sobre a terra

Vivemos sobre a terra. Apresento-te
a nossa casa, os nomes que damos ás coisas,
as honras que nos são destinadas,
este corpo de sangue e nervos.

Sobre ele que julgamos vivo
dizes minha razão. A da vida
e a de outras coisas que se percebem.

Os barcos retomam lentos o seu lugar
em volta de um coração marinho.
Como se morre aqui?

João Miguel Fernandes Jorge

Quatro sonetos de meditação

I

Mas o instante passou. A carne nova

Sente a primeira fibra enrijecer

E o seu sonho infinito de morrer

Passa a caber no berço de uma cova.

Outra carne vírá. A primavera

É carne, o amor é seiva eterna e forte

Quando o ser que viver unir-se à morte

No mundo uma criança nascerá.

Importará jamais por quê? Adiante

O poema é translúcido, e distante

A palavra que vem do pensamento

Sem saudade. Não ter contentamento.

Ser simples como o grão de poesia.

E íntimo como a melancolia.

II

Uma mulher me ama. Se eu me fosse

Talvez ela sentisse o desalento

Da árvore jovem que não ouve o vento

Inconstante e fiel, tardio e doce.

Na sua tarde em flor. Uma mulher

Me ama como a chama ama o silêncio

E o seu amor vitorioso vence

O desejo da morte que me quer.

Uma mulher me ama. Quando o escuro

Do crepúsculo mórbido e maduro

Me leva a face ao gênio dos espelhos

E eu, moço, busco em vão meus olhos velhos

Vindos de ver a morte em mim divina:

Uma mulher me ama e me ilumina.

III

O efêmero. Ora, um pássaro no vale

Cantou por um momento, outrora, mas

O vale escuta ainda envolto em paz

Para que a voz do pássaro não cale.

E uma fonte futura, hoje primária

No seio da montanha, irromperá

Fatal, da pedra ardente, e levará

À voz a melodia necessária.

O efêmero. E mais tarde, quando antigas

Se fizerem as flores, e as cantigas

A uma nova emoção morrerem, cedo

Quem conhecer o vale e o seu segredo

Nem sequer pensará na fonte, a sós…

Porém o vale há de escutar a voz.

IV

Apavorado acordo, em treva. O luar

É como o espectro do meu sonho em mim

E sem destino, e louco, sou o mar

Patético, sonâmbulo e sem fim.

Desço na noite, envolto em sono; e os braços

Como ímãs, atraio o firmamento

Enquanto os bruxos, velhos e devassos

Assoviam de mim na voz do vento.

Sou o mar! sou o mar! meu corpo informe

Sem dimensão e sem razão me leva

Para o silêncio onde o Silêncio dorme

Enorme. E como o mar dentro da treva

Num constante arremesso largo e aflito

Eu me espedaço em vão contra o infinito.

Vinicius de Moraes

Lisbon revisited

Nada me prende a nada.

Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo.

Anseio com uma angústia de fome de carne

O que não sei que seja –

Definidamente pelo indefinido…

Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto

De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias.

Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.

Não há na travessa achada o número da porta que me deram.

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.

Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.

Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.

Até a vida só desejada me farta – até essa vida…

Compreendo a intervalos desconexos;

Escrevo por lapsos de cansaço;

E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.

Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;

Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me naufrago;

ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.

Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma…

E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,

Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa

(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),

Nas estradas e atalhos das florestas longínquas

Onde supus o meu ser,

Fogem desmantelados, últimos restos

Da ilusão final,

Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,

As minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus.

Outra vez te revejo,

Cidade da minha infância pavorosamente perdida…

Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui…

Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,

E aqui tornei a voltar, e a voltar.

E aqui de novo tornei a voltar?

Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,

Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória,

Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?

Outra vez te revejo,

Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.

Outra vez te revejo – Lisboa e Tejo e tudo -,

Transeunte inútil de ti e de mim,

Estrangeiro aqui como em toda a parte,

Casual na vida como na alma,

Fantasma a errar em salas de recordações,

Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem

No castelo maldito de ter que viver…

Outra vez te revejo,

Sombra que passa através das sombras, e brilha

Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,

E entra na noite como um rastro de barco se perde

Na água que deixa de se ouvir…

Outra vez te revejo,

Mas, ai, a mim não me revejo!

Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,

E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim –

Um bocado de ti e de mim!…

Álvaro de Campos

Saudades

Saudades! Sim… talvez… e porque não?…

Se o nosso sonho foi tão alto e forte

Que bem pensara vê-lo até à morte

Deslumbrar-me de luz o coração!

Esquecer! Para quê?… Ah! como é vão!

Que tudo isso, Amor, nos não importe.

Se ele deixou beleza que conforte

Deve-nos ser sagrado como pão!

Quantas vezes, Amor, já te esqueci,

Para mais doidamente me lembrar,

Mais doidamente me lembrar de ti!

E quem dera que fosse sempre assim:

Quanto menos quisesse recordar

Mais a saudade andasse presa a mim!

Florbela Espanca

Gosto das mulheres que envelhecem

Gosto das

mulheres que envelhecem,

com a pressa das suas rugas, os cabelos

caídos pelos ombros negros do vestido,

o olhar que se perde na tristeza

dos reposteiros. Essas mulheres sentam-se

nos cantos das salas, olham para fora,

para o átrio que não vejo, de onde estou,

embora adivinhe aí a presença de

outras mulheres, sentadas em bancos

de madeira, folheando revistas

baratas. As mulheres que envelhecem

sentem que as olho, que admiro os seus gestos

lentos, que amo o trabalho subterrâneo

do tempo nos seus seios. Por isso esperam

que o dia corra nesta sala sem luz,

evitam sair para a rua, e dizem baixo,

por vezes, essa elegia que só os seus lábios

podem cantar.

Nuno Júdice

O Tempo

O despertador é um objeto abjeto.

Nele mora o Tempo. O Tempo não pode viver sem

nós, para não parar.

E todas as manhãs nos chama freneticamente como

um velho paralítico a tocar a campanhinha atroz.

Nós

é que vamos empurrando, dia a dia, sua cadeira de

rodas.

Nós, os seus escravos.

Só os poetas

os amantes

os bêbados

podem fugir

por instantes

ao Velho…Mas que raiva dá no Velho quando

encontra crianças a brincar de roda

e não há outro jeito senão desviar delas a sua

cadeira de rodas!

Porque elas, simplesmente, o ignoram…

Mario Quintana

Súplica

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,

E que nele posso navegar sem rumo,

Não respondas

Às urgentes perguntas

Que te fiz.

Deixa-me ser feliz

Assim,

Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.

Só soubemos sofrer, enquanto

O nosso amor

Durou.

Mas o tempo passou,

Há calmaria…

Não perturbes a paz que me foi dada.

Ouvir de novo a tua voz seria

Matar a sede com água salgada.

Miguel Torga

Nova Poética

Vou lançar a teoria do poeta sórdido.

Poeta sórdido:

Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.

Vai um sujeito,

Sai um sujeito com a roupa de brim branco muito bem engomada,

e na primeira esquina passa um caminhão,

salpica-lhe o paletó de uma nódoa de lama:

É a vida.

O poema deve ser como a nódoa no brim:

Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.

Sei que a poesia é também orvalho.

Mas este fica para as menininhas,

as estrelas alfas,

as virgens cem por cento

e as amadas que envelheceram sem maldade.

Manuel Bandeira

Arma secreta

Tenho uma arma secreta
ao serviço das nações.
Não tem carga nem espoleta
mas dispara em linha recta

mais longe que os foguetões.
Não é Júpiter, nem Thor,
nem Snark ou outros que tais.
É coisa muito melhor

que todo o vasto teor
dos Cabos Canaverais.
A potência destinada
às rotações da turbina

não vem da nafta queimada,
nem é de água oxigenada
nem de ergóis de furalina.
Erecta, na noite erguida,

em alerta permanente,
espera o sinal da partida.
Podia chamar-se VIDA.
Chama-se AMOR, simplesmente.

António Gedeão

Lua Adversa

Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua…
Perdição da minha vida!

Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.
Fases que vão e vêm,

no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.
E roda a melancolias
eu interminável fuso!

Não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua…)
No dia de alguém ser meu

não é dia de eu ser sua…
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu…

Cecília Meireles

 

Noturno

 

Não sei por que, sorri de repente

E um gosto de estrela me veio na boca…

Eu penso em ti, em Deus, nas voltas inumeráveis que fazem os caminhos…

Em Deus, em ti, de novo…

Tua ternura tão simples…

Eu queria, não sei por que, sair correndo descalço pela noite imensa

E o vento da madrugada me encontraria morto junto de um arroio,

Com os cabelos e a fronte mergulhados na água límpida…

Mergulhados na água límpida, cantante e fresca de um arroio!

 

Nunca ninguém sabe se estou louco para rir

ou para chorar.

Por isso o meu verso tem

Esse quase imperceptível tremor…

A vida é louca, o mundo é triste:

Vale a pena matar-se por isso?

Nem por ninguém!

Só se deve morrer de puro amor…

 

 

Mário Quintana

A miséria do meu ser

A miséria do meu ser,
Do ser que tenho a viver,
Tornou-se uma coisa vista.
Sou nesta vida um qualquer

Que roda fora da pista.
Ninguém conhece quem sou
Nem eu mesmo me conheço
E, se me conheço, esqueço,

Porque não vivo onde estou.
Rodo, e o meu rodar apresso.
É uma carreira invisível,

Salvo onde caio e sou visto,
Porque cair é sensível
Pelo ruído imprevisto…

Sou assim. Mas isto é crível?

Fernando Pessoa

O tempo passa?

Não passa no abismo do coração

lá dentro, perdura a graça

do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima

cada vez mais, nos reduz

a um só verso e uma rima

de mãos e olhos, na luz.

O tempo é todo vestido

de amor e tempo de amar

O meu tempo e o teu

transcendem qualquer medida.

Além do amor, não há nada,

amar é o sumo da vida.

Pois só quem ama escutou

o apelo da eternidade.

Carlos Drummond de Andrade

Desejo

Se eu soubesse que no mundo
Existia um coração,
Que só por mim palpitasse
De amor em terna expansão;

Do peito calara as mágoas,
Bem feliz eu era então!
Se essa mulher fosse linda
Como os anjos lindos são,

Se tivesse quinze anos,
Se fosse rosa em botão,
Se inda brincasse inocente
Descuidosa no gazão;

Se tivesse a tez morena,
Os olhos com expressão,
Negros, negros, que matassem,
Que morressem de paixão,

Impondo sempre tiranos
Um jugo de sedução;
Se as tranças fossem escuras,
Lá castanhas é que não,

E que caíssem formosas
Ao sopro da viração,
Sobre uns ombros torneados,
Em amável confusão;

Se a fronte pura e serena
Brilhasse d’inspiração,
Se o tronco fosse flexível
Como a rama do chorão,

Se tivesse os lábios rubros,
Pé pequeno e linda mão;
Se a voz fosse harmoniosa
Como d’harpa a vibração,

Suave como a da rola
Que geme na solidão,
Apaixonada e sentida
Como do bardo a canção;
E se o peito lhe ondulasse

Em suave ondulação,
Ocultando em brancas vestes
Na mais branda comoção
Tesouros de seios virgens,

Dois pomos de tentação;
E se essa mulher formosa
Que me aparece em visão,
Possuísse uma alma ardente,
Fosse de amor um vulcão;

Por ela tudo daria…
— A vida, o céu, a razão!

Casimiro de Abreu

Trânsito

Tal qual me vês,
há séculos em mim:
números, nomes, o lugar dos mundos
e o poder do sem fim.

Inútil perguntar
por palavras que disse:
histórias vãs de circunstância,
coisas de desespero ou meiguice.

(Mísera concessão,
no trajeto que faço:
postal de viagem, endereço efêmero,
álibi para a sombra do meu passo…)

Começo mais além:
onde tudo isso acaba, e é solidão.
Onde se abraçam terra e céu, caladamente,
e nada mais precisa explicação.

Cecília Meireles