O Macaco

 

O pai esfregou as mãos, numa satisfação profunda:

— Como é, minha filha, como é? É amanhã o grande dia?

Beata suspirou, transfigurada:

— Parece, papai.

Dr. Laerte tomou, entre as suas, as mãos pequeninas da filha:

— Muito feliz?

A pequena tem um novo suspiro:

— Demais, papai. Feliz demais! — Pausa e acrescenta, já com lágrimas nos olhos: — Nunca pensei que se pudesse ser tão feliz!

Emocionado também, o velho balbucia:

— Deus te abençoe, meu anjo. Deus te faça a mais feliz das mulheres.

Beata baixa a cabeça, num arrepio:

— Amém.

Beata tinha dezessete anos e nascera, como se diz, num ber­ço de ouro. Pertencia a uma família esplêndida. Basta dizer o seguinte: entre os seus antepassados, havia barões, baronesas e um ministro do Império. Além dos privilégios de educação, de fortuna e nascimento, possuía uma série de dons naturais, que a tornavam uma criatura de exceção. Namorava Lisandro há dois anos. E não se podia desejar um casal mais perfeito. Pode-se dizer que, entre os dois, só existiam afinidades, seja de di­nheiro, seja de posição, seja de virtudes pessoais. Pois Lisan­dro também era rico (ou de família rica), fisicamente bonito e moralmente bem formado. Sentia-se nele o destino do diplo­mata. Lisandro tinha ainda uma virtude, que não parece mas in­flui muito: era o primeiro, o primeiríssimo amor de Beata. Ela sublinhava: “Primeiro e último”. Vinte e quatro horas antes do casamento, o pai a interroga pela manhã. Beata diz o que já sa­bemos, concluindo, com involuntária tristeza:

— Papai, quem sabe se tanta felicidade não é pecado?

 

 

A AMIGA

 

Há cinco dias que, nos preparativos do casamento, Beata andava numa roda-viva. Dormia alta madrugada e acordava ce­dinho. Já a mãe, as irmãs, as vizinhas ponderavam: “Assim vo­cê não agüenta”. A própria Beata confessava às amigas que lhe telefonavam:

— Estou dormindo em pé. Ah, que prego!

Na véspera do casamento, depois do almoço, uma amiga, Geni, passa de automóvel pela sua casa. Entra por um momen­to, avisando: “Visita de médico, ouviu?”. Conversa daqui, dali e, de repente, vira-se para Beata: “Sabe onde é que eu vou ago­ra? Imagina: ao jardim zoológico”. Beata acha graça, mas já a outra, muito animada, explica:

— Vou ver o novo gorila. Dizem que é um espetáculo. Parece homem, percebeste? Queres ir comigo? Eu te levo e, de­pois, te deixo aqui, de automóvel. Topas?

Beata boceja: “Tenho muito que fazer!”. Mas a mãe, que escutara o convite, anima: “Vai, minha filha, vai! Você já traba­lhou demais!”. As irmãs secundaram: “É uma distração!”. Aca­bou aceitando. Mas, antes de sair, recomenda:

— Faz um favor. Se Lisandro telefonar, avisa que eu não demoro. Volto já!

 

O GORILA

 

No automóvel, Beata pergunta: “Que idéia foi essa de ver macaco?”. Geni ria, no volante:

— Dizem que esse é uma coisa tremenda. O King Kong es­crito!

Meia hora depois, estão boquiabertas diante da jaula do go­rila que acabara de chegar não sei de onde. Era, de fato, algo gigantesco e inenarrável. Beata imobilizou-se, como que magnetizada. Geni, crispada, balbuciou: “Que coisa!”. Todas as suas impressões eram, de uma maneira geral, frívolas, efêmeras. Desta vez, porém, parecia experimentar um sentimento de terror profundo. Quis arrastar Beata: “Vamos embora. É feio demais! Hor­rível!”. Beata continuava no mesmo lugar, assombrada. E, sú­bito, Geni tem um riso que é o disfarce histérico de sua angústia:

— Está te olhando! Gostou de ti!

Beata trinca os dentes:

— Isola!

 

 

A VOLTA

 

Quando apanharam o automóvel para voltar, Beata tem um lamento: “Eu não devia ter vindo! Fiz mal!”. Geni já estava re­cuperada; ria-se agora da própria reação. Nada perdurava na sua alma muito leve e muito frívola. Guiando o automóvel com maestria e imprudência, brincou com a amiga:

— Ele não tirava os olhos de ti. E queres saber de uma coi­sa? Há macacos que se apaixonam por mulheres! E mulheres que se apaixonam por macacos.

Numa espécie de febre, Beata pediu:

— Não brinca assim, por amor de Deus!

Quando entrou em casa, a irmã caçula perguntou:

— Que tal o macaco? Respondeu, com rancor:

— Horrendo, puxa! Olha só como eu estou arrepiada!

Mostrou o braço. Na verdade, tinha febre.

 

 

LOUCURA

 

De noite, antes do noivo chegar, voltou-se para o dr. Laerte: “Quer vir um instantinho aqui, papai?”. Trancou-se com o velho no gabinete. Acende um cigarro, de fumo macio, aromático. E fez a pergunta súbita: “Papai, eu conto com o senhor, papai, não conto?”. Admirou-se:

— Claro!

Pousou o cigarro no cinzeiro. Ergue o rosto e fecha os olhos e anuncia, sóbria: “Papai, eu não quero mais casar!”. O velho estava sentado. Levantou-se em câmera lenta. Atônito, repetia: “Não quer casar?”.

E ela: “Não, papai, não quero casar!”. Dr. Laerte põe as mãos na cabeça:

— Mas que piada é essa? Não quer casar por quê? Deve ha­ver um motivo. Qual?

Vacila:

— Bem, papai. Não há motivo, ouviu? Simplesmente, não quero e pronto.

O velho tratou de dominar a situação. A perspectiva do es­cândalo aterrou-o. Faz a filha sentar-se; submeteu-a a um inter­rogatório: “Minha filha, ninguém toma decisão dessa natureza sem uma razão muito forte…”. Durante uns quarenta minutos ela resistiu à pressão paterna. Por fim, exausta, admite:

— Eu gosto de outro, compreendeu? Gosto de outro. Es­se é o motivo!

 

O OUTRO

 

Dr. Laerte sofria do coração. Experimentou um tal abalo com a atitude da filha que calculou: “É agora que eu vou ter um colapso”. Todavia, como punha aquela menina acima de tudo e de todos, fez das tripas coração e disse: “Você é quem sabe se deve ou não deve casar. Não quer? Muito bem. Não ca­sa, pronto. E pode contar comigo”. Foi um pânico, no resto da família, quando se soube que Beata não queria casar. A mãe ficou logo com palpitações, falta de ar. Uma solteirona, tia da menina, a interpelou: “Você endoideceu?”. Dr. Laerte teve que ralhar, zangado:

— Vê se não dá palpites, carambolas! E trata de distribuir os doces com a vizinhança.

Quem ficou alucinado foi o noivo. Perguntou ao ex-quase futuro sogro: “O senhor acha isso direito?”. O velho perdeu a paciência:

— Acho, sim. Perfeitamente. Acho. A única coisa que eu acho direito é a felicidade de minha filha.

Como o rapaz insistisse, cassou-lhe a palavra: “Passe bem”.

 

 

IMPOSSÍVEL AMOR

 

Numa incompreensão obtusa e dolorosa, as pessoas daquela família se entreolhavam apavoradas. O pai, amargurado, mas se­reno, fechou-se novamente com a filha: “Você diz que gosta de outro. Mas quem é o rapaz, minha filha? Ele gosta de ti?”. Beata teve uma explosão:

— É inútil, papai. Eu não direi. Basta que o senhor saiba o seguinte: eu não poderia me casar com ele, nunca! Nunca!

Até alta noite, dr. Laerte tratou de arrancar da filha a iden­tidade do outro: “Ele tem um nome. Ao menos, o nome. Diz o nome!”. Encarou o pai, numa espécie de desafio: “Nunca!”. Dr. Laerte deixa Beata e vai dizer à esposa: “Deve ser um ho­mem casado”.

 

O FIM

 

No dia seguinte, ou seja, o dia que devia ser do casamento, Beata caiu de cama. E, desde o primeiro momento, disse aos pais, às irmãs, com tranqüila e apavorada certeza: “Eu vou mor­rer”. Estiolou-se dia a dia, hora a hora, sem que médico nenhum pudesse explicar ou, sequer, dar um nome ao mal súbito e mis­terioso que a matava. Em vão perguntavam: “Quem é este ho­mem?”. Ela trancava os lábios e não dizia. Só uma vez, atormen­tada de febre, balbuciou uma resposta delirante, que ninguém entendeu: “Não é um homem…”. Morreu dois meses depois. As pessoas que a vestiam para o caixão encontraram, entre os seios da morta, o retrato de um gorila monstruoso recortado de um jornal. Ninguém deu a menor importância à fotografia.

 

Nelson Rodrigues, in A vida como ela é.

 

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