O Rouxinol e a Rosa

– Ela disse que dançaria comigo se eu lhe levasse rosas vermelhas – exclamou o Estudante – mas estamos no inverno e não há uma única rosa no jardim…

Por entre as folhas, do seu ninho, no carvalho, o Rouxinol o ouviu e, vendo-o ficou admirado…

– Não há nenhuma rosa vermelha no jardim! – disse o Estudante, com os olhos cheios de lágrimas. – Ah! Como a nossa felicidade depende de pequeninas coisas! Já li tudo quanto os sábios escreveram. A filosofia não tem segredos para mim e, contudo, a falta de uma rosa vermelha é a desgraça da minha vida.

Eis, afinal, um verdadeiro apaixonado! – disse o Rouxinol. Tenho cantado o Amor noite após noite, sem conhecê-lo, no entanto; noite após noite falei dele às estrelas, e agora o vejo… O cabelo é negro como a flor do jacinto e os lábios vermelhos como a rosa que deseja; mas o amor pôs-lhe na face à palidez do marfim e o sofrimento marcou-lhe a fronte.

– Amanhã à noite o Príncipe dá um baile, murmurou o Estudante, e a minha amada se encontrará entre os convidados. Se levar uma rosa vermelha, dançará comigo até a madrugada. Somente se lhe levar uma rosa vermelha… Ah… Como queria tê-la em meus braços, sentir-lhe a cabeça no meu ombro e a sua mão presa a minha. Não há rosa vermelha em meu jardim… E ficarei só; ela apenas passará por mim… Passará por mim… E meu coração se despedaçará.

– Eis um verdadeiro apaixonado… – pensou o Rouxinol. – Do que eu canto, ele sofre. O que é dor para ele é alegria para mim. Grande maravilha, na verdade, é o Amar! Mais precioso que esmeraldas e mais caro que opalas finas. Pérolas e granada não podem comprá-lo, nem se oferece nos mercados. Mercadores não o vendem, nem o conferem em balanças a peso de ouro.

– Os músicos da galeria – prosseguiu o Estudante – tocarão nos seus instrumentos de corda e, ao som de harpas e violinos, minha amada dançará. Dançará tão leve, tão ágil, que seus pés mal tocarão o assoalho e os cortesãos, com suas roupas de cores vivas, reunir-se-ão em torno dela. Mas comigo não bailará, porque não tenho uma rosa vermelha para dar-lhe… – e atirando-se à relva, ocultou nas mãos o rosto e chorou.

– Por que está chorando? – perguntou um pequeno lagarto ao passar por ele, correndo, de rabinho levantado.

– É mesmo! Por que será? – Indagou uma borboleta que perseguia um raio de sol.

– Por quê? – sussurrou uma linda margarida à sua vizinha.

– Chora por causa de uma rosa vermelha, – informou o Rouxinol.

– Por causa de uma rosa vermelha? – exclamaram – Que coisa ridícula! E o lagarto, que era um tanto irônico, riu à vontade.

Mas o Rouxinol compreendeu a angústia do Estudante e, silencioso, no carvalho, pôs-se a meditar sobre o mistério do Amor.

Subitamente, abriu as asas pardas e voou.

Cortou, como uma sombra, a alameda, e como uma sombra, atravessou o jardim.

Ao centro do relvado, erguia-se uma roseira. Ele a viu. Voou para ela e posou num galho.

– Dá-me uma rosa vermelha – pediu – e eu cantarei para ti a minha mais bela canção!

– Minhas rosas são brancas; tão brancas quanto à espuma do mar, mais brancas que a neve das montanhas. Procura minha irmã, a que enlaça o velho relógio-de-sol. Talvez te ceda o que desejas.

Então o Rouxinol voou para a roseira, que enlaçava o velho relógio-de-sol.

– Dá-me uma rosa vermelha – pediu – e eu te cantarei minha canção mais linda.

A roseira sacudiu-se levemente.

– Minhas rosas são amarelas como os cabelos dourados das donzelas, ainda mais amarelas que o trigo que cobre os campos antes da chegada de quem o vai ceifar. Procura a minha irmã, a que vive sob a janela do Estudante. Talvez ela possa te possa ajudar.

O Rouxinol então, dirigiu o vôo para a roseira que crescia sob a janela do Estudante.

– Dá-me uma rosa vermelha – pediu – e eu te cantarei a mais linda de minhas canções.

A roseira sacudiu-se levemente.

– Minhas rosas são vermelhas, tão vermelhas quanto os pés das pombas, mais vermelhas que os grandes leques de coral que oscilam nos abismos profundos do oceano. Contudo, o inverno regelou-me até as veias, a geada queimou-me os botões e a tempestade quebrou-me os galhos. Não darei rosas este ano.

– Eu só quero uma rosa vermelha, repetiu o Rouxinol, – uma só rosa vermelha. Não haverá meio de obtê-la?

– Há, respondeu a Roseira, mas é meio tão terrível que não ouso revelar-te.

– Dize. Não tenho medo.

– Se queres uma rosa vermelha, explicou a roseira, hás de fazê-la de música, ao luar, tingi-la com o sangue de teu coração. Tens de cantar para mim com o peito junto a um espinho. Cantarás toda a noite para mim e o espinho deve ferir teu coração e teu sangue de vida deve infiltrar-se em minhas veias e tornar-se meu.

– A morte é um preço exagerado para uma rosa vermelha – exclamou o Rouxinol – e a Vida é preciosa… É tão bom voar, através da mata verde e contemplar o sol em seu esplendor dourado e a lua em seu carro de pérola… O aroma do espinheiro é suave, e suaves são as campânulas ocultas no vale, e as urzes tremulantes na colina. Mas o Amor é melhor que a Vida. E que vale o coração de um pássaro comparado ao coração de um homem?

Abriu as asas pardas para o vôo e ergueu-se no ar. Passou pelo jardim como uma sombra e, como uma sombra, atravessou a alameda.

O Estudante estava deitado na relva, no mesmo ponto em que o deixara, com os lindos olhos inundados de lágrimas.

– Rejubila-te – gritou-lhe o Rouxinol – Rejubila-te; terás a tua rosa vermelha. Vou fazê-la de música, ao luar. O sangue de meu coração a tingirá. Em conseqüência só te peço que sejas sempre verdadeiro amante, porque o Amor é mais sábio do que a Filosofia; mais poderoso que o poder. Tem as asas da cor da chama e da cor da chama tem o corpo. Há doçura de mel em seus braços e seu hálito lembra o incenso.

O Estudante ergueu a cabeça e escutou. Nada pode entender, porém, do que dizia o Rouxinol, pois sabia apenas o que está escrito nos livros.

Mas o Carvalho entendeu e ficou melancólico, porque amava muito o pássaro que construíra ninho em seus ramos.

– Canta-me um derradeiro canto – segredou-lhe – sentir-me-ei tão só depois da tua partida.

Então o Rouxinol cantou para o Carvalho, e sua voz fazia lembrar a água a borbulhar de uma jarra de prata.

Quando o canto finalizou, o Estudante levantou-se, tirando do bolso um caderninho de notas e um lápis.

– Tem classe, não se pode negar – disse consigo – atravessando a alameda. Mas terá sentimento? Não creio. É igual a maioria dos artistas. Só estilo, sinceridade nenhuma. Incapaz de sacrificar-se por outrem. Só pensa e cantar e bem sabemos quanto a Arte é egoísta. No entanto, é forçoso confessar, possui maravilhosas notas na voz. Que pena não terem significação alguma, nem realizarem nada realmente bom!

Foi para o quarto, deitou-se e, pensando na amada, adormeceu.

Quando a lua refulgia no céu, o Rouxinol voou para a Roseira e apoiou o peito contra o espinho. Cantou a noite inteira e o espinho mais e mais foi se enterrando em seu peito, e o sangue de sua vida lentamente se escoou…

Primeiro descreveu o nascimento do amor no coração de um menino e uma menina; e, no mais alto galho da Roseira, uma flor desabrochou, extraordinária, pétala por pétala, acompanhando um canto e outro canto. Era pálida, a princípio, qual a névoa que esconde o rio, pálida qual os pés da manhã e as asas da alvorada. Como sombra de rosa num espelho de prata, como sombra de rosa em água de lagoa era a rosa que apareceu no mais alto galho da Roseira.

Mas a Roseira pediu ao Rouxinol que se unisse mais ao espinho. – Mais ainda, Rouxinol, – exigiu a Roseira, – senão o dia raia antes que eu acabe a rosa.

O Rouxinol então apertou ainda mais o espinho junto ao peito, e cada vez mais profundo lhe saía o canto porque ele cantava o nascer da paixão na alma do homem e da mulher.

E tênue nuance rosa nacarou as pétalas, igual ao rubor que invade a face do noivo quando beija a noiva nos lábios.

Mas o espinho não lhe alcançava ainda o coração e o coração da flor continuava branco – pois somente o coração de um Rouxinol pode avermelhar o coração de rosa.

– Mais ainda, Rouxinol, – clamou a Roseira – raiar o dia antes que eu finalize a rosa.

E o Rouxinol, desesperado, calcou-se mais forte no espinho, e o espinho lhe feriu o coração, e uma punhalada de dor o traspassou.

Amarga, amarga lhe foi a angústia e cada vez mais fremente foi o canto, porque ele cantava o amor que a morte aperfeiçoa, o amor que não morre nem no túmulo.

E a rosa maravilhosa tornou-se purpurina como a rosa do céu oriental. Suas pétalas ficaram rubras e, vermelho como um rubi, seu coração.

Mas a voz do Rouxinol se foi enfraquecendo, as pequeninas asas começaram a estremecer e uma névoa cobriu-lhe o olhar, o canto tornou-se débil e ele sentiu qualquer coisa apertar-lhe a garganta.

Então, arrancou do peito o derradeiro grito musical.

Ouviu-o a lua branca, esqueceu-se da Aurora e permaneceu no céu.

A rosa vermelha o ouviu, e trêmula de emoção, abriu-se à aragem fria da manhã. Transportou-o o Eco, à sua caverna purpurina, nos montes, despertando os pastores de seus sonhos. E ele levou-os através dos caniços dos rios e eles transmitiram sua mensagem ao mar.

– Olha! Olha! Exclamou a Roseira. – A rosa está pronta, agora.

Ao meio dia o Estudante abriu a janela e olhou.

– Que sorte! – disse – Uma rosa vermelha! Nunca vi rosa igual em toda a minha vida. É tão linda que tem certamente um nome complicado
em latim. E curvou-se para colhê-la.

Depois, pondo o chapéu, correu à casa do professor.

– Disseste que dançarias comigo se eu te trouxesse uma rosa vermelha, – lembrou o Estudante. – Aqui tens a rosa mais linda e vermelha de todo o mundo. Hás de usá-la, hoje a noite, sobre ao coração, e quando dançarmos juntos ela te dirá o quanto te amo.

A moça franziu a testa.

– Esta rosa não combina com o meu vestido, disse. Ademais, o Capitão da Guarda mandou-me jóias verdadeiras, e jóias, todos sabem, custam muito mais do que flores…

– És muito ingrata! – exclamou o Estudante, zangado. E atirou a rosa a sarjeta, onde a roda de um carro a esmagou.

– Sou ingrata? E o senhor não passa de um grosseirão. E, afinal de contas, quem és? Um simples estudante… Não acredito que tenhas fivelas de prata, nos sapatos, como as tem o Capitão da Guarda… – e a moça levantou-se e entrou em casa.

– Que coisa imbecil, o Amor! – Resmungou o estudante, afastando-se. – Nem vale a utilidade da Lógica, porque não prova nada, está sempre prometendo o que não cumpre e fazendo acreditar
em mentiras. Nada tem de prático e como neste século o que vale é a prática, volto à Filosofia e vou estudar metafísica.

Retornou ao quarto, tirou da estante um livro empoeirado e pôs-se a ler…

 

Oscar Wilde

O Mestre

Naqueles tempos, em que a escuridão dominava a terra, José de Arimateia, acendeu uma tocha feita de pinho e desceu das colinas até ao vale. Tinha algo que fazer na sua própria casa.

E viu, ajoelhando-se sobre as duras pedras do Vale da Desolação, um jovem nu que se lamentava. Os seus cabelos eram da cor do mel e o seu corpo como uma flor branca, mas tinha-se ferido e colocado cinzas no cabelo, como se de uma coroa se tratasse.

Ele, o que tanto possuía, disse para o jovem que estava nu, a chorar: «Não me surpreendo que o teu desgosto seja tão imenso, pois Ele era certamente um homem justo».

Nesse instante, o rapaz respondeu: «Não é por Ele que choro mas por mim próprio. Eu também transformei água em vinho e curei o leproso e dei vista ao cego. Caminhei sobre as águas, e dos túmulos que tinham por esconderijos, expulsei demónios. Alimentei esfomeados em desertos onde nada existia que se pudesse comer, e ressuscitei mortos das suas estreitas habitações, e à minha ordem, diante de uma grande multidão, uma figueira estéril frutificou. Todas as coisas que esse homem fez, também eu as fiz. E, contudo, ninguém me crucificou.»

Oscar Wilde

Escolho meus amigosnão pela pele

Escolho meus amigos não pela pele  ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila.
Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.
A mim não interessam
os bons de espírito nem os maus de hábitos.
Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo.
Deles não quero resposta, quero meu avesso.
Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.
Para isso, só sendo louco.
Quero os santos, para que
não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.
Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta.
Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria.
Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto.
Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade.
Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.
Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem,
mas lutam para que a fantasia não desapareça.
Não quero amigos adultos nem chatos.
Quero-os metade infância e outra metade velhice!
Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto;
e velhos, para que nunca tenham pressa.
Tenho amigos para saber quem eu sou.
Pois os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos,
nunca me esquecerei de que “normalidade” é uma ilusão imbecil e estéril.

Oscar Wilde

A lenda de Narciso

Quando Narciso morreu, vieram as Oréiades – deusas do bosque – e viram o lago transformado, de um lago de água doce, num cântaro de lágrimas salgadas.

– Porque você chora? – perguntaram as Oréiades.

– Choro por Narciso – disse o lago.

– Ah, não nos espanta que você chore por Narciso – continuaram elas.

– Afinal de contas, apesar de todas nós sempre corrermos atrás dele pelo bosque, você era o único que tinha a oportunidade de contemplar de perto sua beleza.

– Mas Narciso era belo? – perguntou o lago.

– Quem mais do que você poderia saber disso ? – responderam, surpresas, as Oréiades.

– Afinal de contas, era em suas margens que ele se debruçava todos os dias.

O lago ficou algum tempo quieto. Por fim, disse:
– Eu choro por Narciso, mas jamais havia percebido que Narciso era belo.
” Choro por Narciso porque, todas as vezes que ele se deitava sobre minhas margens eu podia ver, no fundo dos seus olhos, minha própria beleza refletida”.

Oscar Wilde

De profundis

Encontro, algures na minha natureza, alguma coisa que me diz que não há nada no mundo que seja desprovido de sentido, e muito menos o sofrimento. Essa qualquer coisa, escondida no mais fundo de mim, como um tesouro num campo, é a humildade. É a última coisa que me resta, e a melhor (…).

Ela veio-me de dentro de mim mesmo e sei que veio no bom momento. Não teria podido vir mais cedo nem mais tarde. Se alguém me tivesse falada dela, tê-la-ia rejeitado. Se ma tivessem oferecido, tê-la-ia rejeitado (…).

É a única coisa que contém os elementos da vida, de uma vida nova (…).

Entre todas as coisas ela é a mais estranha (…).

É somente quando perdemos todas as coisas que sabemos que a possuímos.

 

(Oscar Wilde, in “De Profundis”)

A lenda de Narciso – Por

Quando Narciso morreu, vieram as Oréiades – deusas do bosque – e viram o lago transformado, de um lago de água doce, num cântaro de lágrimas salgadas.      
– Porque você chora? – perguntaram as Oréiades.
– Choro por Narciso – disse o lago.      
– Ah, não nos espanta que você chore por Narciso – continuaram elas.
– Afinal de contas, apesar de todas nós sempre corrermos atrás dele pelo bosque, você era o único que tinha a oportunidade de contemplar de perto sua beleza.
– Mas Narciso era belo? – perguntou o lago.
– Quem mais do que você poderia saber disso ? – responderam, surpresas, as Oréiades.
– Afinal de contas, era em suas margens que ele se debruçava todos os dias.
O lago ficou algum tempo quieto. Por fim, disse:      
– Eu choro por Narciso, mas jamais havia percebido que Narciso era belo.      
” Choro por Narciso porque, todas as vezes que ele se deitava sobre minhas margens eu podia ver, no fundo dos seus olhos, minha própria beleza refletida”.

 

Oscar Wilde.

O Mestre

Quando as trevas começaram a cair sobre a Terra, José de Arimatéia acendeu uma tocha de pinheiro e desceu da colina para o vale. Tinha o que fazer em casa. E ajoelhando-se sobre as pedras do vale da Desolação, viu um jovem que estava nu e chorava. Seus cabelos eram da cor do mel e seu corpo tão branco como uma flor. Mas ferira o corpo nos espinhos e sobre os cabelos pusera cinzas, à guisa de coroa.

E José, que possuía grandes virtudes, disse ao jovem que se encontrava nu e chorava:

– Não me admira que o teu sentimento seja tão grande, porque, realmente, Ele foi um homem justo.

E o jovem respondeu:

– Não é por Ele que eu choro, mas por mim mesmo. Eu também mudei a água em vinho, curei o leproso e restituía a vista ao cego. Andei sobre as águas e das profundezas dos sepulcros expulsei demônios. Alimentei os famintos no deserto, onde não havia comida; ergui os mortos dos leitos exíguos e à minha ordem, diante de imensa multidão, uma figueira seca novamente frutificou. Tudo que esse homem realizou eu também realizei e, todavia, não me crucificaram.

 

Oscar Wilde

A Atriz

Existiu outrora uma grande atriz. Uma mulher que alcançara tamanhos triunfos que todo o mundo da arte a adorava, curvado a seus pés. 

O incenso da adoração perfumara-lhe a vida por muitos anos e vedara-lhe os olhos para as outras coisas, de sorte que ela a nada mais aspirava. 

Não obstante, chegou o dia em que conheceu um homem, a quem amou com toda a força da alma. Então sua arte, seus triunfos e as nuvens de incenso nada mais significaram para ela – o amor era toda a sua vida. Mas embora pensasse assim, o homem que ela amava tornou-se ciumento – ciumento do público que não mais lhe interessava. 

Pediu-lhe que desistisse da sua carreira e abandonasse o palco para sempre. Ela acedeu sem resistência, e disse: 

– O amor é melhor do que a arte, melhor do que a fama, melhor do que a própria vida. 

E logo abandonou alegremente o palco e todos os triunfos para dedicar sua vida ao homem que amava. 

O tempo transcorreu, o amor do homem começou rapidamente a diminuir e a mulher que tudo havia sacrificado por ele perecebeu-o; a certeza disso caiu-lhe n`alma como a neblina fria do entardecer, envolvendo-a da cabeça aos pés numa mortalha de desespero. Tratava-se, porém, de uma mulher corajosa, decidida, e embora com a mágoa estampada no rosto, não se deixou abater. Compreendeu que teria de sobrepujar a crise da sua vida, a crise da qual dependia o seu destino. 

Com perspicácia e cruel clarividência, sentiu a realidade que lhe despedaçava o coração. Sacrificara a carreira ao seu amor e agora este amor lhe fugia. Se não encontrasse meios para reanimar a chama que bruxuelava e breve se apagaria totalmente, se conservaria solitária em meio aos escombros de sua vida arruinada. 

E a mulher, que fora uma grande atriz, percebera que a sua arte, em vez de ser-lhe um estímulo ou uma inspiração nesta fase penosa da vida, demonstrara o contrário – era desvantagem e obstáculo. Alheara-se da orientação dos diretores de cena e das idéias e conselhos dos autores. Até então nada fizera sem eles – cada pensamento, cada entonação de voz e, mesmo, cada gesto era-lhe sugerido, pois esta é a arte do ator. E, agora, quando se via obrigada a pensar, criar e agir por si mesma, sentia-se desamparada, sem recursos, como uma criança repentinamente às voltas com um grande problema. Mas à medida que os dias se passavam, impunha-se cada vez mais ação pronta e enérgica. 

Um dia, quando andava de um lado para o outro, com o gérmen selvagem do desespero crescendo-lhe no íntimo a cada minuto que passava, um homem foi vê-la. Ele fora empresário do teatro onde ela trabalhara. Viera pedir-lhe que representasse numa nova peça. Ela recusou. Que iria fazer no palco com essa arte falsa que transforma aqueles que a praticam em fantoches, fantoches irremediáveis, movidos por cordéis manejados pelas mãos dos autores e diretores de cena? 

Agora ela se encontrava face a face com a verdadeira tragédia da vida, ao lado da qual todas as falsas tristezas do palco nada mais eram senão lantejoulas e bambinelas. Contudo, o empresário insistiu, dizendo-lhe que a oferta significava dinheiro para ele, zumbindo-lhe em torno com a persistência de uma mosca no outono, que não quer ser enxotada. 

Não quereria pelo menos ler a peça? Para livar-se dele, leu-a, e reconheceu que a tragédia impressa era a tragédia da sua própria vida. A mesma situação: o problema estava resolvido. 

O destino viera em auxílio da atriz numa peça teatral. Ela devia representá-la dominando inteiramente cada detalhe do enredo. Estudou, então, a parte que lhe competia e a representou para um grande auditório. Atuou com fervor do gênio que jamais ultrapassara durante a sua carreira e o aplauso que retumbou de todos os lados foi a homenagem irresistível tributada pelos espíritos e corações dos homens àqueles que possuem gênio. 

Quando tudo chegou ao fim, ela voltou para casa fatigada e um tanto surpresa com os gritos e aplausos da multidão ainda lhe ressoando nos ouvidos. Dera-lhe o máximo, pusera-lhe aos pés o poder e a maravilha da sua alma. Tudo que lhe restava agora era um sentimento de impotência e fragilidade. Chegara à casa entristecida e carregada de flores. Repentinamente, observou que havia dois pratos na mesa preparada para a ceia e lembrou-se de que, nesta noite, fora resolvido o seu destino. Esquecera-o até então. Naquele momento o homem que ela amara entrou, indagando: 

– Cheguei na hora? 

Ela olhou para o relógio, e respondeu: 

– Chegaste na hora, mas demasiadamente tarde.

Oscar Wilde

Soneto a Liberdade

Não que eu ame teus filhos cujo olhar obtuso 

Somente vê a própria e repugnante dor, 

Cuja mente não sabe, ou quer saber, de nada 

É que, com seu rugir, tuas Democracias, 

Teus reinos de Terror e grandes Anarquias 

Refletem meus afãs extremos como o mar, 

Dando-me Liberdade! -à cólera uma irmã. 

Minha alma circunspeta gosta de teus gritos 

Confusos só por causa disso: do contrário, 

Reis com sangrento açoite ou seus canhões traiçoeiros 

Roubavam às nações seus sagrados direitos, 

Deixando-me impassível e ainda, ainda assim, 

Esses Cristos que morrem sobre as barricadas, 

Deus sabe que os apóio ao menos parcialmente. 

Oscar Wilde

A Balada do Cárcere de Reading

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… O casaco escarlate não usou, pois tinha

De sangue e vinho o jeito;

E sangue e vinho em suas mãos havia quando

Prisioneiro foi feito,

Deitado junto à mulher morta que ele amava

E matara em seu leito.

Ao caminhar em meio aos julgadores, roupa

Cinza e gasta vestia;

Tinha um boné de críquete, e seu passo lépido

E alegre parecia;

Mas nunca em minha vida alguém olhar

Tão angustiado o dia.

Eu nunca vi na vida que tivesse

Tanta angústia no olhar,

Ao contemplar a tenda azul que os prisioneiros

De céu usam chamar,

E as nuvens à deriva, que iam com as velas

Cor de prata pelo ar.

Num pavilhão ao lado, andei com outras almas

Também a padecer,

Imaginando se seu erro fora grave

Ou um erro qualquer,

Quando alguém sussurou baixinho atrás de mim:

"O homem tem que pender".

Cristo! As próprias paredes da prisão eu vi

Girando ao meu redor,

E o céu sobre a cabeça transformou-se em elmo

De um aço abrasador;

E, embora eu fosse alma a sofrer, já nem sequer

Sentia a minha dor.

Sabia qual o pensamento perseguido

Que lhe estugava o andar,

E porque demonstrava, ao ver radiante o dia,

Tanta angústia no olhar;

O homem matara a coisa amada, e ora devia

Com a morte pagar.

Apesar disso-escutem bem-todos os homens

Matam a coisa amada;

Com o galanteio alguns o fazem, enquanto outros

Com a face amargurada;

Os covardes o fazem com um beijo,

Os bravos, com a espada!

Um assassina o seu amor na juventude,

Outro, quando ancião;

Com as mãos da Luxúria este estrangula, aquele

Empresta do Ouro a mão;

Os mais gentis usam a faca, porque frios

Os mortos logo estão.

Este ama pouco tempo, aquele ama demais;

Há comprar, e há vender;

Uns fazem o ato em pranto, enquanto que um suspiro

Outros não dão sequer.

Todo homem mata a coisa amada!- Nem por isso

Todo homem vai morrer.