A MORTA

Basta dizer o seguinte: era uma pequena cidade, quase ine­xistente, metida nos cafundós-do-judas. Nem rádio, nem tele­fone, nem dentista. E o que a caracterizava acima de tudo era a falta de mulher. Ao todo uma meia dúzia para uns cento e cin­qüenta seringueiros. Acresce que estavam todas casadas e que os maridos eram válidos e com um senso feroz e homicida de propriedade.

Eles avisavam:

— Quem se meter a besta, já sabe. Passo fogo!

E ninguém mexia com as infelizes. Elas viviam encerradas nos seus buracos, sob controle tremendo, sem alegria nenhu­ma. Quando abriam a boca, era um rir de dentes cariados. Não cuidavam de si, não se enfeitavam. Enfeitar para quê? Para o pró­prio marido? De pé no chão e imundas, não interessariam a ninguém, salvo ao esposo e aos cento e cinqüenta seringueiros, coitados, que viviam no mato e que já nem se lembravam da própria condição humana.

E foi nesta cidade, esquecida de Deus, que o Quincas ba­teu um dia. Chegou, foi espiando e perguntando, a um e outro:

— Como é que é o negócio aqui, hein?

Disseram:

— Uma droga.

Resposta vaga que não satisfez a quem vinha de fora, e não conhecia coisa nenhuma da cidade, nem suas pessoas, nem seus costumes. No único boteco do lugar, com um companheiro aci­dental, o Quincas explicou que fora para ali, sabe por quê? Bai­xou a voz:

— Matei uma cara. Estou fugindo da polícia.

A MULHER

Com a tremenda vitalidade dos seus vinte e cinco anos, tra­zia uma idéia fixa. E perguntou:

— Aqui tem boas pequenas?

— Tem e não tem.

Espantou-se:

— Como?

O outro foi mais claro:

— Todas as mulheres aqui são casadas.

— Todas?

— Todas.

E o Quincas, na febre dos vinte e cinco anos, insistiu:

— Mas não se dá um jeito? Não se arranja uma solução?

O companheiro cuspiu por cima do próprio ombro e foi categórico:

— Não há solução.

Não houve limites para a decepção de Quincas. Pulou:

— Essa é a maior! — E, cutucando o outro: — “Nem pa­gando mais? Muito mais? O dobro?”.

Batia no próprio bolso:

— Faz uma forcinha, faz!

 

 

A FOME

 

Então, desanimado, o Quincas começou a perambular pe­la cidade. E, pouco a pouco, foi perdendo as ilusões. No fim de dez dias, era outro homem: fez uma meia dúzia de amigos e perguntava:

— Como é? As mulheres daqui não dão as caras?

— Você é besta!

— Por quê?

Riram na cara dele:

— Você pensa que os maridos vão deixar? A mulher que meter o nariz do lado de fora está frita.

Quincas coçou a cabeça, praguejou:

— Terra amaldiçoada!

Nostálgico da cidade, nostálgico do litoral, acabou se lem­brando da pequena que matara. Contou que ela o passara para trás. Mas, naquele fim do mundo, em pleno território do Acre, suas idéias sobre a fulana já eram outras. Dir-se-ia que o ódio ia, gradualmente, extinguindo-se no seu coração. Admitia:

— Tinha suas qualidades.

Os amigos, com água na boca, faziam perguntas diretas e sôfregas:

— Bom corpo?

E ele, fincando os cotovelos na mesa, numa convicção pro­funda:

— Que coxas!

Os outros se entreolhavam, numa inveja medonha. Houve quem explodisse:

— Você é uma boa besta. Não devia ter matado. Que palpi­te infeliz!

Quincas acabou reconhecendo:

— Foi um golpe errado!

E, agora, já se contentaria com o mínimo, ou seja, “ver” uma das mulheres locais. Seria uma satisfação visual, uma espé­cie de triste e idiota compensação. Interpelava os habitantes: “Como é que vocês agüentam?”. Os outros respondiam: “A gen­te se acostuma”. E ele, passando a mão pela cabeleira imensa, à Búfalo Bill, dava murros na mesa:

— Pois olha! Eu não agüento. Qualquer dia estouro!

A falta de uma mulher doía mais nele do que fome, sede. Dizia a si mesmo: — “Se, ao menos, um desses pilantras mor­resse!”.

 

 

A IDÉIA

 

Um dia, no boteco, aventurou:

— Sabe o que é que mais me admira? Que me deixa besta?

— O quê?

E ele, na sua fúria contida:

— Que ninguém aqui tenha se lembrado de matar um pi­lantra desses e ficar com a mulher!

Houve um silêncio. Todas as caras presentes pareciam es­pantadas. Um fulano, que catava lêndeas na cabeça de outro, interrompeu esta função. Estava de boca aberta, num assom­bro absoluto. Deixou-se cair numa cadeira, como se a idéia, que jamais lhe ocorrera, o deslumbrasse. O Quincas, vendo o efei­to, tratou de explorá-lo. Era direito aquilo, era? Enquanto uma meia dúzia tinha mulher, cento e cinqüenta sujeitos não. Deu outro murro na mesa:

— Não somos palhaços de ninguém! — E esbravejava, ca­da vez mais exaltado: — Está errado, erradíssimo!

Então, pouco a pouco, as bocas, as mãos, os olhos foram se transformando. Dir-se-ia que a loucura do Quincas contagia­va todo mundo. E o rapaz, arregimentando adesões, berrava: “Por que é que o marido há de ter mais direito do que nós?”. Formulava o problema com uma expressão de triunfo: “Res­pondam”. E, fora de si, aduzia o argumento numérico: “O marido é um só e nós somos cento e cinqüenta!”. Queria, em resumo, que fossem, de casa em casa, arrancar as mulheres. Houve um súbito berro coletivo no boteco. E teria acontecido o diabo se, de repente, não irrompesse, ali, um sujeito, de pés descalços e barbudo como os outros. O sujeito anunciou:

— A mulher do Baiano está morrendo!

 

 

O ROSTO

 

De um instante para outro, a fúria se fundiu em espanto. Quincas apertou a cabeça, entre as mãos, gemendo:

— É o cúmulo! É o cúmulo!

E, sem mais palavra, aqueles homens atormentados dirigi­ram-se, num maciço e solidário grupo, para a casa do Baiano. Iam fazer o quê? Nem o próprio Quincas poderia dizê-lo. Crispavam as mãos e suas gargantas estavam secas e ardentes. À me­dida que iam avançando pelo mato, o Quincas tomava-se de uma fúria obtusa contra as potências misteriosas do destino. E só di­zia, entredentes: “Como é que pode? Como é que pode?”. Parecia-lhe provação demais que morresse uma mulher num lu­gar em que existiam tão poucas.

Enfim, chegaram diante da casa do Baiano. Quincas adian­tou-se, mas não chegou a bater, porque o próprio Baiano sur­gia diante do grupo, apontando a carabina. Lá dentro ninguém chorava pela mulher que, doente do peito, acabara de morrer. E o dono da casa, com os olhos injetados, a boca torcida, avisou:

— Ninguém toca em minha mulher! O primeiro que der um passo come fogo!

Era taciturno e mau, e cumpriria a ameaça. Então, Quin­cas, mais moço que os outros, com a memória ainda recente das mulheres da cidade, pediu, implorou:

— Não queremos nada demais. Só espiar tua mulher. Um pouquinho só.

O marido acabou deixando. E houve o desfile, maravilha­do, pelo quarto, onde estava a infeliz, um esqueleto com um leve, muito leve, revestimento de pele. Eram homens pratica­mente loucos, possessos. Mas respeitaram a morte. Alta noite, o marido apanhou de novo a carabina e foi enxotando:

— Fora daqui, todo mundo! E não pensem que eu sou bes­ta de enterrar minha mulher! Não confio em nenhum de vocês, seus cachorros!

Saíram todos, já na antecipada nostalgia do rosto femini­no. Sozinho, o marido fechou tudo, arriou as trancas da porta. E, então, encerrado com a mulher, derramou querosene na de­funta e em si mesmo; riscou um fósforo e fez a dupla fogueira.

Do lado de fora, os homens rondavam, enfurecidos.

 

A vida como ela é, Nelson Rodrigues

2 comentários sobre “A MORTA

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