Subversiva

A poesia
quando chega
não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
de qualquer de seus abismos
desconhece o Estado e a Sociedade Civil
infringe o Código de Águas
relincha
como puta
nova
em frente ao Palácio da Alvorada.
E só depois
reconsidera: beija
nos olhos os que ganham mal
embala no colo
os que têm sede de felicidade
e de justiça.
E promete incendiar o país.

Ferreira Gullar

Registro

À janela
de meu apartamento
à rua Duvivier 49
(sistema solar, planeta Terra,
Via Láctea)
limpo as unhas da mão
por volta das quatro e quarenta da tarde
do dia 2 de dezembro de 2008
enquanto
na galáxia M 31
a 2 milhões e 200 mil anos-luz de distância
extingue-se uma estrela

Ferreira Gullar

Um pouco antes

Quando já não for possível encontrar-me
em nenhum ponto da cidade
ou do planeta
pensa

ao veres no horizonte
sobre o mar de Copacabana
uma nesga azul de céu
pensa que resta alguma coisa de mim
por aqui

Não te custará nada imaginar
que estou sorrindo ainda naquela nesga
azul celeste
pouco antes de dissipar-me para sempre

Ferreira Gullar

Poemas portugueses 5

Prometi-me possuí-la muito embora
ela me redimisse ou me cegasse.
Busquei-a na catástrofe da aurora,
e na fonte e no muro onde sua face,

entre a alucinação e a paz sonora
da água e do musgo, solitária nasce.
Mas sempre que me acerco vai-se embora
como se me temesse ou me odiasse.

Assim persigo-a, lúcido e demente.
Se por detrás da tarde transparente
seus pés vislumbro, logo nos desvãos

das nuvens fogem, luminosos e ágeis!
Vocabulário e corpo – deuses frágeis –
eu colho a ausência que me queima as mãos.

Ferreira Gullar

Recado

Os dias, os canteiros,
deram agora para morrer como nos museus
em crepúsculos de convalescença e verniz
a ferrugem substituída ao pólen vivo.
São frutas de parafina
pintadas de amarelo e afinadas
na perspectiva de febre que mente a morte.

Ao responsável por isso,
quem quer que seja,
mando dizer que tenho um sexo
e um nome que é mais que um púcaro de fogo:
meu corpo multiplicado em fachos.

Às mortes que me preparam e me servem
na bandeja
sobrevivo,
que a minha eu mesmo a faço, sobre a carne da perna,
certo,
como abro as páginas de um livro
– e obrigo o tempo a ser verdade

Ferreira Gullar

O açúcar

O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.

Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira,
dono da mercearia.

Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.

Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem
aos vinte e sete anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.

Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.

Ferreira Gullar

 

Estranheza do mundo

Olho a árvore e indago:
está aí para quê?
O mundo é sem sentido
quanto mais vasto é.

Esta pedra esta folha
este mar sem tamanho
fecham-se em si, me
repelem.

Pervago em um mundo estranho.
Mas em meio à estranheza
do mundo, descubro
uma nova beleza
com que me deslumbro;

é teu doce sorriso
é tua pele macia
são teus olhos brilhando
é essa tua alegria.

Olho a árvore e já
não pergunto "para quê"?
A estranheza do mundo
se dissipa em você.

Ferreira Gullar

Canção de preferência

Não quero teus seios túmidos
de desejos maternais.
Se teus seios são redondos,
há muitos outros iguais.

Não quero teus lábios úmidos
(beijos, carícias, corais).
Se teus lábios são vermelhos,
existem lábios iguais.

Não desejo teus cabelos
– lembranças de vendavais –
Se teus cabelos são belos,
sei de cabelos iguais.

Não, não desejo teu corpo
de contornos sugestivos,
de braços, de tudo o mais…

Só quero teus olhos – teus
olhos sem adjetivos
– teus olhos originais!

Ferreira Gullar

Redundâncias

Ter medo da morte
é coisa dos vivos
o morto está livre
de tudo o que é vida

Ter apego ao mundo
é coisa dos vivos
para o morto não há
(não houve)
raios rios risos

E ninguém vive a morte
quer morto quer vivo
mera noção que existe
só enquanto existo.

Ferreira Gullar

Evocação de Silêncios

O silêncio habitava
o corredor de entrada
de uma meia morada
na rua das Hortas

o silêncio era frio
no chão de ladrilhos
e branco de cal
nas paredes altas

enquanto lá fora
o sol escaldava

Para além da porta
na sala nos quartos
o silêncio cheirava
àquela família

e na cristaleira
(onde a luz
se excedia)
cintilava extremo:

quase se partia

Mas era macio
nas folhas caladas
do quintal
vazio

e
negro
no poço
negro

que tudo sugava:
vozes luzes
tatalar de asa

o que
circulava
no quintal da casa

Ferreira Gullar

Redundâncias

Ter medo da morte
é coisa dos vivos
o morto está livre
de tudo o que é vida

Ter apego ao mundo
é coisa dos vivos
para o morto não há
(não houve)
raios rios risos

E ninguém vive a morte
quer morto quer vivo
mera noção que existe
só enquanto existo.

Ferreira Gullar

Recado

O dias, os canteiros,
deram agora para morrer como nos museus
em crepúsculos de convalescença e verniz
a ferrugem substituída ao pólem vivo.

São frutas de parafina
pintadas de amarelo e afinadas
na perpectiva de febre que mente a morte.

Ao responsável por isso,
quem quer que seja,
mando dizer que tenho um sexo
e um nome que é mais que um púcaro de fogo;
meu corpo multiplicado em fachos.

Às mortes que me preparam e me servem
na bandeja
sobrevivo,
que a minha eu mesmo a faço, sobre a carne da perna,
certo,
como abro as páginas de um livro
– e abrigo o tempo a ser verdade.


Ferreira Gullar

No Corpo

De que vale tentar reconstruir com palavras
o que o verão levou
entre nuvens e risos
junto com o jornal velho pelos ares?
O sonho na boca, o incêndio na cama,
o apelo na noite
agora são apenas esta
contração (este clarão)
de maxilar dentro do rosto.
A poesia é o presente.

Ferreira Gullar

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?

Ferreira Gullar

Aprendizado

Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.
Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão
que a vida só consome
o que a alimenta

Ferreira Gullar

Poema

Se morro
universo se apaga como se apagam
as coisas deste quarto
se apago a lâmpada:
os sapatos – da – ásia, as camisas
e guerras na cadeira, o paletó –
dos – andes,
bilhões de quatrilhões de seres
e de sóis
morrem comigo.
Ou não:
o sol voltará a marcar
este mesmo ponto do assoalho
onde esteve meu pé;
deste quarto
ouvirás o barulho dos ônibus na rua;
uma nova cidade
surgirá de dentro desta
como a árvore da árvore.
Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens
a mesma história que eu leio, comovido.

Ferreira Gullar

Um homem ri

Ele ria da cintura para cima. Abaixo
da cintura, atrás, sua mão
furtiva
inspecionava na roupa
Na frente e sobretudo no rosto, ele ria,
expelia um clarão, um sumo
servil
feito uma flor carnívora se esforça na beleza da corola
na doçura do mel
Atrás dessa auréola, saindo
dela feito um galho, descia o braço
com a mão e os dedos
e à altura das nádegas trabalhavam
no brim azul das calças
(como um animal no campo na primavera
visto de longe, mas
visto de perto, o focinho, sinistro,
de calor e osso, come o capim do chão)
O homem lançava o riso como o polvo lança a sua tinta e foge
Mas a mão buscava o cós da cueca
talvez desabotoada
um calombo que coçava
uma pulga sob a roupa
qualquer coisa que fazia a vida pior.

Ferreira Gullar

Cantiga para não morrer

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Ferreira Gullar

Cantada

Você é mais bonita que uma bola prateada
de papel de cigarro
Você é mais bonita que uma poça dágua
límpida
num lugar escondido
Você é mais bonita que uma zebra
que um filhote de onça
que um Boeing 707 em pleno ar
Você é mais bonita que um jardim florido
em frente ao mar em Ipanema
Você é mais bonita que uma refinaria da Petrobrás
de noite
mais bonita que Ursula Andress
que o Palácio da Alvorada
mais bonita que a alvorada
que o mar azul-safira
da República Dominicana
Olha,
você é tão bonita quanto o Rio de Janeiro
em maio
e quase tão bonita
quanto a Revolução Cubana

Ferreira Gullar

 

Cantiga para não Morrer

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Ferreira Gullar

 

 

Barulho

Todo poema é feito de ar
apenas:
a mão do poeta
não rasga a madeira
não fere
o metal
a pedra
não tinge de azul
os dedos
quando escreve manhã
ou brisa
ou blusa
de mulher.
O poema
é sem matéria palpável
tudo
o que há nele
é barulho
quando rumoreja
ao sopro da leitura.

Ferreira Gullar

 

Cantiga para não morrer

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

 

Ferreira Gullar

 

Meu povo, meu poema

 

Meu povo e meu poema crescem juntos

como cresce no fruto

a árvore nova.

No povo meu poema vai nascendo

como no canavial

nasce verde o açúcar.

No povo meu poema está maduro

como o sol

na garganta do futuro.

Meu povo em meu poema

se reflete

como a espiga se funde em terra fértil.

Ao povo seu poema aqui devolvo

menos como quem canta

do que planta.

 

Ferreira Gullar

Cantiga para não morrer

 

Quando você for se embora,

moça branca como a neve,

me leve.

Se acaso você não possa

me carregar pela mão,

menina branca de neve,

me leve no coração.

Se no coração não possa

por acaso me levar,

moça de sonho e de neve,

me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa

por tanta coisa que leve

já viva em seu pensamento,

menina branca de neve,

me leve no esquecimento.

 

Ferreira Gullar

 

Dois e dois são quatro

Como dois e dois são quatro
Sei que a vida vale a pena
Embora o pão seja caro
E a liberdade pequena
Como teus olhos são claros
E a tua pele, morena
como é azul o oceano
[E a lagoa, serena
Como um tempo de alegria
Por trás do terror me acena
E a noite carrega o dia
No seu colo de açucena
– sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
mesmo que o pão seja caro
e a liberdade pequena.

Ferreira Gullar

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.


Uma parte de mim

é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim

pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim

almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim

é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

 
Uma parte de mim

é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?

 

Ferreira Gullar

Sete Poemas Portugueses

Prometi-me possuí-la muito embora

ela me redimisse ou me cegasse.

Busquei-a nas catástrofes, na aurora,

e na fonte e no muro onde sua face

entre a alucinação e a paz sonora

da água e do musgo, solitário nasce.

Mas sempre que me acerco vai-se embora

como se me temesse ou me odiasse.

Assim persigo-a lúcido e demente.

Se por detrás da tarde transparente

seus pés vislumbro, logo nos desvãos

das nuvens fogem, luminosos e ágeis.

Vocabulário e corpo – deuses frágeis –

eu colho a ausência que me queima as mãos.

Ferreira Gullar

Balada das coisas sem importância

Conheço se há moscas no leite,

Conheço pela roupa o homem,

Conheço o tédio e o deleite,

Conheço a fartura e a fome,

Conheço a mulher pelo enfeite,

Conheço o princípio e o fim,

Conheço pela chama o azeite,

Conheço tudo, menos a mim.

Conheço o gibão pela gola,

Conheço o rico pelo anel,

Conheço o fiel pela sacola,

Conheço a monja pelo véu,

Conheço o porco pela tripa,

Conheço o irmão pelo latim,

Conheço o vinho pela pipa,

Conheço tudo, menos a mim.

Conheço a mula e o cavalo,

Conheço o carro e a carreta,

Conheço a galinha e o galo,

Conheço o sino e a sineta,

Conheço a flor pelo talo

Conheço Abel e Caim,

Conheço o pote e o gargalo,

Conheço tudo, menos a mim.

Ofertório

Príncipe, conheço tudo em suma,

Conheço o branco e o carmim,

E a morte que o fim consuma.

Conheço tudo, menos a mim.

François Villon traduzido por Ferreira Gullar

O Gol

A esfera desce

Do espaçoVeloz

Ele a apara

No peito

E a pára

No ar

Depois

Com o joelho

A dispõe a meia altura

Onde

Iluminada

A esfera

Espera

O chute que

Num relâmpago

A dispara

Na direção

Do nosso 

Coração.

Ferreira Goullar

Outro Poema Erótico – Coito

Todos os movimentos

           do amor

           são noturnos

mesmo quando praticados

           à luz do dia 

Vem de ti o sinal

           no cheiro ou no tato

que faz acordar o bicho

           em seu fosso:

           na treva, lento,

           se desenrola

                     e desliza

em direção a teu sorriso 

Hipnotiza-te

com seu guizo

                     envolve-te

em seus anéis

corredios

                     beija-te

                     a boca em flore por baixo

           com seu esporão

           te fende te fode

           e se fundem

           no gozo 

depois

desenfia-se de ti 

           a teu lado

           na cama

           recupero a minha forma usual

 

Ferreira Gullar