Flores do Mal: LXXXII – Obsessão

Bosques, encheis de susto como as catedrais,
Como os órgãos rugis; e em corações malditos,
Quartos de terno luto e choros ancestrais,
Todos sentem ecoar vossos fúnebres gritos.
Eu te odeio, oceano! e com os teus tumultos,
Já que és igual a mim! Pois este riso amargo
Do homem a soluçar, todo sombras e insultos,
Eu o escuto no riso enorme do mar largo.
Como serias bela, ó noite sem estrelas,
Que os astros falam sempre claro em sua luz!
Busco o infinito negro e os precipícios nus!
Porém as trevas são elas próprias as telas,
Em que surgem, a vir de meu olho, aos milhares,
Seres vindos do além de rostos familiares.

Charles Baudeleire

Flores do Mal: LXXXI – “Spleen”

E quando pesa o céu, tal tampa grave e baça,
No espírito a gemer e em que só o tédio existe,
E do horizonte enfim todo o círculo abraça,
Vertendo um dia negro e mais que as noites triste;
E quando a terra muda em úmida enxovia,
Em que a esperança é assim morcego pelos murros,
Onde sua asa vibra em medrosa agonia,
Roçando a testa por forros os mais impuros;
E quando a chuva alonga estas linhas tamanhas,
Sempre a imitar as grades de vasta cadeia,
E o calado tropel das infames aranhas
Em nosso coração estende a sua teia,
Os sinos se dispõem com loucura a saltar,
Lançando para o céu o seu vagido horrente,
Espírito que vai errante, sem ter lar,
E começa a gemer tão obstinadamente.
– E os carros funerais, sem música ou tambor,
Lentos passam por mim e a esperança destarte
Vencida, chora; e a angústia estorce-se de dor,
Sobre o meu crânio implanta o seu negro estandarte.

Charles Baudeleire

Flores do Mal: V

 

Amo a recordação daqueles dias nus
Em que Febo inundava as estátuas de luz,
Quando homem e mulher na sua agilidade
Folgavam sem engano e sem a ansiedade.
A afagar-lhes a espinha um sol pleno de amor
Da máquina mais nobre excitava o vigor.
CibeleC, que era então de seio generoso,
Nos seus filhos não via o que fosse oneroso.
Mas, loba, o coração todo ternuras plenas
Aleitava o universo com tetas morenas.
Ágil no seu vigor, o homem em boa lei
Podia envaidecer-se ao chamarem-no rei;
Frutos puros de ultraje e virgens feridas
De carne lisa e firme evocando mordidas.
Hoje, o Poeta quando almeja imaginar
Tal grandeza nativa onde vá contemplar
A nudez da mulher perto da nudez do homem
Sente arrepios negros, os que a alma consomem.
A este negro painel, uma imagem de espanto.
Ah, monstruosidades que esperam um manto!
Troncos dignos de máscaras, ridículos, desnudos,
Pobres corpos torcidos, flácidos ou ventrudos,
E que o Útil, este deus sereno e sem cansaço
Logo à infância envolveu em tristes cueiros de aço.

Charles Baudeleire

Flores do Mal: III – Elevação

 

Por sobre os pantanais, por sobre os descampados,
Por sobre o éter e o mar, por sobre o bosque e o monte,
E muito além do sol, muito além do horizonte,
Para além dos confins dos longes estrelados,
Meu espírito, vais, todos os céus te movem,
Como um bom nadador cais em delíquio na onda,
Sulcas alegremente a imensidão redonda,
Levado por volúpia indizível e jovem.
Bem longe deves voar destes miasmas tão baços;
Vai te purificar por um ar superior,
E bebe, como um puro e divino licor,
O claro fogo que enche os céus lúcidos e serenos!
Este cujo pensar, como a andorinha, muda
Para o céu da manhã num vôo ascensional,
– Que plana sobre a vida a entender afinal
A linguagem da flor e da matéria muda!

Charles Baudeleire

Uma heróica morte

Fancioulle era um admirável palhaço e quase um dos amigos do Príncipe. Mas para as pessoas destinadas a ser cômicos, as coisas sérias têm atrações fatais e, ainda que possa parecer bizarro que as idéias de liberdade e de pátria tomem despoticamente o cérebro de um histrião, um dia Fancioulle entrou em uma conspiração formada por alguns cavalheiros descontentes.

Existem em todos os lugares homens de bem para denunciar ao poder esses indivíduos de humor melancólico que querem depor os príncipes e operar a mudança de uma sociedade, sem consultá-la. Os senhores em questão foram presos, como também Fancioulle, e condenados à morte certa.

Creio sinceramente que o Príncipe tenha ficado quase chocado por encontrar seu ator favorito entre os rebeldes.

O Príncipe não era nem melhor nem pior do que qualquer outro, mas uma excessiva sensibilidade tornava-o, em muitos casos, mais cruel e despótico do que todos os seus semelhantes. Amoroso, apaixonado, excelente conhecedor, também, das belas-artes, era, verdadeiramente, de insaciável volúpia.

Muito indiferente em relação aos homens e à moral, verdadeiro artista, ele próprio, não conhecia inimigo mais perigoso do que o tédio. Os bizarros esforços que fazia para fugir ou para vencer tal tirano do mundo fariam exatamente que tivesse ganho, da parte de um historiador severo, o epíteto de “monstro”, se ele tivesse permitido, em seus domínios, que se escrevesse o que quer que fosse, que não tendesse ao prazer ou à surpresa, que é uma das mais delicadas formas de prazer. A grande infelicidade deste Príncipe foi não ter tido nunca um teatro suficientemente vasto para o seu gênio. Há jovens Neros que foram sufocados em limites muito estreitos, e os séculos futuros ignorarão sempre seus nomes e a sua boa vontade. A imprevisível Providência deu a ele faculdades maiores que seus Estados.

Subitamente correu o boato que o soberano queria perdoar todos os conjurados; e a origem desse boato foi o anúncio de um grande espetáculo onde Fancioulle deveria desempenhar um de seus principais e melhores papéis; e ao qual assistiriam mesmo, dizia-se, os cavalheiros condenados; sinal evidente, acrescentavam os espíritos superficiais, das tendências generosas do Príncipe ofendido.

Da parte de um homem tão natural e voluntariamente excêntrico, tudo é possível, mesmo a virtude, mesmo a demência, sobretudo se se pudesse ter a esperança de encontrar prazeres inesperados. Mas para aqueles que, como eu, puderam penetrar mais adiante na profundeza dessa alma curiosa e doente, seria infinitamente mais provável que o Príncipe quisesse julgar o valor dos talentos cênicos de um homem condenado à morte. Ele queria aproveitar a ocasião para fazer uma experiência fisiológica de interesse capital e verificar até que ponto as faculdades habituais de um artista poderiam ser alteradas ou modificadas pela situação extraordinária em que se encontrava; e mais, existiria mesmo em sua alma uma intenção mais ou menos predisposta à demência? Eis um ponto que jamais poderá ser esclarecido.

Enfim, chegado o grande dia, a pequena corte mostrou todas as suas pompas, e seria difícil conceber, a não ser que se tivesse visto tudo o que a classe privilegiada de um pequeno Estado, de recursos escassos, pode mostrar de esplendores para uma autêntica solenidade. Isso era duplamente verdade, primeiro pela magia de luxo exibido, depois pelo interesse moral e misterioso ao qual estava ligado.

O senhor Fancioulle era excelente sobretudo nos papéis não falados ou pouco expressos em palavras, que são, quase sempre, os principais nesses dramas feéricos cujo objetivo é representar simbolicamente o mistério da vida. Ele entrou em cena com leveza e naturalidade, o que contribuiu para fortificar, no nobre público, a idéia de doçura e perdão.

Quando se diz de um ator: “Eis um bom ator”, serve-se de uma fórmula implicando que, sob o personagem, deixa-se perceber o ator, quer dizer, a arte, o esforço, a vontade. Ora, se o ator chega a ser, relativamente ao personagem que ele está encarregado de representar, o que as melhores estátuas da antiguidade, miraculosamente animadas, vivas, caminhantes, vistosas seriam relativamente à idéia geral e confusa da beleza, isto é, sem dúvida, um caso singular e absolutamente imprevisto. Fancioulle foi essa noite uma perfeita idealização, que seria impossível que não se supusesse viva, possível e real. Este bufão ia, vinha, ria, chorava, entrava em convulsões, com uma indestrutível auréola em volta da cabeça, auréola esta invisível para todos, mas visível por mim e onde se misturavam, em estranho amálgama, os clarões da Arte e a glória do Martírio. Fancioulle introduziu, não sei por que graça especial, o divino e o sobrenatural até nas mais extravagantes pantomimas. Minha pena treme e lágrimas de uma emoção sempre presente sobem-me aos olhos enquanto procuro descrever esta incrível noite. Fancioulle provou-me, de maneira peremptória e irrefutável, que a embriaguez da Arte é mais apta do que qualquer outra para encobrir os terrores do abismo; que o gênio pode representar uma comédia à beira do túmulo com uma alegria que o impede de ver o próprio túmulo, perdido como está em um paraíso que exclui toda idéia de sepultura e de destruição.

Todo este público, por mais afetado e frívolo que pudesse ser, sofreu logo a poderosa dominação artística. Ninguém sonhou mais sobre a morte, o luto, nem sobre suplício. Cada um abandonou-se, sem inquietação, às volúpias multiplicadas da visão de uma obra-prima da arte viva. As explosões de alegria e de admiração abalaram várias vezes as cúpulas do edifício com a energia de um trovão contínuo. Até mesmo o Príncipe, inebriado, juntou seus aplausos aos da corte.

Entretanto para um olho clarividente, essa embriaguez não era sem contraste. Sentia-se ele vencido no seu poder de déspota? Humilhado na sua arte de aterrorizar os corações e entorpecer os espíritos? Frustrado de esperanças e ludibriado nas suas previsões? Estas conjecturas, exatamente justificadas, mas não absolutamente injustificáveis, atravessaram meu espírito enquanto eu contemplava a face do Príncipe, sobre a qual uma palidez nova juntava-se sem cessar à palidez habitual, como a neve que cai sobre a neve. Seus lábios cercavam-se cada vez mais e os olhos brilhavam com um fogo interior semelhante ao do ciúme e ao rancor, mesmo quando aplaudia ostensivamente o talento de seu velho amigo, o estranho bufão, que gracejava tão bem com a morte. A um certo momento, vi Sua Alteza inclinar-se para um pequeno pajem que estava atrás dele e lhe falar ao ouvido. A fisionomia maliciosa do lindo jovem iluminou-se com um sorriso; depois ele deixou rapidamente o camarote do Príncipe, como para cumprir uma missão urgente.

Alguns minutos mais tarde um silvo agudo, prolongado, interrompeu Fancioulle em um de seus melhores momentos e feriu tanto os ouvidos quanto os corações. E do lugar da sala de onde havia brotado a desaprovação inesperada, um menino precipitou-se para um corredor em gargalhadas abafadas.

Fancioulle, agitado, acordado de seu sonho, inicialmente fechou os olhos, depois reabriu-os e, quase de imediato, arregalou-os desmesuradamente; em seguida abriu a boca como para respirar convulsivamente, cambaleou, um pouco para a frente, um pouco para trás e, depois, tombou morto sobre o assoalho, O silvo, rápido como uma espada, frustrara realmente o carrasco? O Príncipe previra toda a homicida eficácia de seu ardil? É permitido duvidar. Deplorava ele a morte de seu caro e inímitável Fancioulle? É doce e legítimo acreditar.

Os fidalgos, culpados, haviam gozado pela última vez o espetáculo da representação. Naquela noite mesma eles foram apagados da vida.

Desde então, muitos mímicos justamente apreciados em diversos países vieram representar diante da corte de ***; mas nenhum deles fez lembrar os maravilhosos talentos de Fancioulle, nem conseguiu obter os mesmos favores.

 

Charles Baudelaire, Pequenos Poemas em Prosa.

O Relógio

Os chineses vêem as horas pelos olhos dos gatos.

Certo dia, um missionário, passeando no distrito de Nanquim, notou que havia esquecido o relógio e perguntou as horas a um rapazinho.

Ao primeiro instante, o garoto do Celeste Império hesitou; depois, pensando melhor, respondeu:

– Vou dizer.

Decorridos alguns momentos, reaparecia, segurando nos braços um gato muito gordo; e, fitando o animal, como se usa dizer, no branco do olho, afirmou sem hesitação:

– Ainda não é exatamente meio dia.

E era verdade.

Por mim, ao inclinar-me para a bela Felina, a de nome tão adequado, aquela que é ao mesmo tempo a honra do seu sexo, o orgulho do meu coração e o perfume do meu espírito, – quer de noite, quer de dia, em plena luz ou na sombra opaca, no fundo de seus olhos adoráveis vejo sempre, nitidamente, a hora, sempre a mesma, uma hora vasta, solene, grande como o espaço, sem divisões de minutos nem de segundos, uma hora imóvel que não é marcada nos relógios, e todavia leve como um suspiro, rápida como um olhar.

E, se algum importuno me viesse interromper enquanto o meu olhar repousa sobre este delicioso relógio, se algum Gênio descortês e intolerante, algum Demônio do contratempo me viesse dizer : -"Que é que estás a mirar com tamanha atenção? Que buscas nos olhos dessa criatura? Vês acaso neles a hora, mortal prodígio e vagabundo?"- eu responderia sem hesitar: -"Sim, vejo a hora: é a Eternidade."

Pois não é, senhora, que fiz um madrigal verdadeiramente meritório e tão cheio de ênfase quanto vós mesma? Na verdade, tive tanto prazer em bordar esta preciosa galanteria que não vos pedirei nada em troca.

Charles Baudelaire

O Homem e o Mar

Homem livre, o oceano é um espelho fulgente
Que tu sempre hás-de amar. No seu dorso agitado,
Como em puro cristal, contemplas, retratado,
Teu íntimo sentir, teu coração ardente.

Gostas de te banhar na tua própria imagem.
Dás-lhe beijo até, e, às vezes, teus gemidos
Nem sentes, ao escutar os gritos doloridos,
As queixas que ele diz em mística linguagem.

Vós sois, ambos os dois, discretos tenebrosos;
Homem, ninguém sondou teus negros paroxismos,
Ó mar, ninguém conhece os teus fundos abismos;
Os segredos guardais, avaros, receosos!

E há séculos mil, séc’ulos inumeráveis,
Que os dois vos combateis n’uma luta selvagem,
De tal modo gostais n’uma luta selvagem,
Eternos lutador’s ó irmãos implacáveis!

Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal"

Flores do Mal, IV – Correspondências

A Natureza é um templo onde vivos pilares
Podem deixar ouvir confusas vozes: e estas
Fazem o homem passar através de florestas
De símbolos que o vêem com olhos familhares.
Como os ecos além confundem seus rumores
Na mais profunda e mais tenebrosa unidade,
Tão vasta como a noite e como a claridade,
Harmonizam-se os sons, os perfumes e as cores.
Perfumes frescos há como carnes de criança
Ou oboés de doçura ou verdejantes ermos
E outros ricos, triunfais e podres na fragrância
Que possuem a expansão do universo sem termos
Como o sândalo, o almíscar, o benjoim e o incenso
Que cantam dos sentidos o transporte imenso.

Charles Baudeleire

II – O Albatroz

Às vezes, por folgar, os homens da equipagem
Pegam de um albatroz, enorme ave do mar,
Que segue – companheiro indolente de viagem –
O navio no abismo amargo a deslizar.

E por sobre o convés, mal estendido apenas,
O imperador do azul, canhestro e envergonhado,
Asas que enchem de dó, grandes e de alvas penas,
Eis que deixa arrastar como remos ao lado.

O alada viajor tomba como num limbo – A!
Hoje é cômico e feio, ontem tanto agradava!
Um ao seu bico leva o irritante cachimbo,
Outro imita a coxear o enfermo que voava!

O Poeta é semelhante ao príncipe do céu
Que do arqueiro se ri e da tormenta no ar;
Exilado na terra e em meio do escarcéu,
As asas de gigante impedem-no de andar.

Flores do Mal, Charles Baudeleire

 

VII – Os Cegos

Contemplai-os, minha alma, eis que são pavorosos!
São como os manequins, ridículos noctâmbulos,
E de sinistro horror como os sonâmbulos;
E quem sabe aonde vão seus globos tenebrosos?
Seus olhos, donde a chama eternal é partida,
Como se olhassem longe estão no firmamento;
E não se os vê jamais, por sobre o pavimento,
Inclinar vagamente a fronte sucumbida.
Atravessam assim a infinda escuridade,
Esta irmã do silêncio imutável, cidade!
Enquanto em torno a nós é um lamento o teu canto
Que é tão atroz que chega a perder-se no orgasmo,
Vê que eu erro também e mais do que eles pasmo,
Digo: “O que pelos céus eles procuram tanto?”

Flores do Mal, Charles Baudeleire

A um passante

A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
Erguendo e balançando a barra alva da saia;

Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina.
Eu bebia, como um basbaque extravagante,
No tempestuoso céu do seu olhar distante,
A doçura que encanta e o prazer que assassina.

Brilho… e a noite depois! – Fugitiva beldade
De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais te hei de rever senão na eternidade?

Longe daqui­! tarde demais! nunca talvez!
Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!


(tradução de Guilherme de Almeida)

La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d’une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l’ourlet;

Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l’ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair… puis la nuit! – Fugitive beauté
Dont le regard m’a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l’éternité?

Ailleurs, bien loin d’ici! trop tard! jamais peutêtre!
Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
Ô toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais!

Charles Baudelaire

O Vampiro

Tu que, como uma punhalada,
Em meu coração penetraste,
Tu que, qual furiosa manada
De demônios, ardente, ousaste,

De meu espírito humilhado,
Fazer teu leito e possessão
– Infame a qual estou atado
Como um galé ao seu grilhão,

Como ao barulho ao jogador,
Como à carniça ao parasita,
Como à garrafa ao bebedor
– Maldita sejas tu, maldita!

Supliquei ao gládio veloz
Que a liberdade me alcançasse,
E ao veneno, pérfido algoz,
Que a covardia me amparasse.

Ai de mim! Com mofa e desdém,
Ambos me disseram então:
"Digno não és de ninguém
Jamais te arranque a escravidão,

Imbecil! – se de teu retiro
Te libertássemos um dia,
Teu beijo ressuscitaria
O cadáver de teu vampiro!

Charles Baudelaire

O Relógio

Relógio, deus sinistro, alarmante, impassível,
Dedo ameaçador a dizer: "Lembra bem!
As dores vivas para o teu coração vêm
E logo o acertarão com mira infalível;

"Como ninfa subindo ao fundo do cenário,
Foge para o horizonte o Prazer vaporoso;
Cada instante devora tua parte do gozo
Que cabe a cada um no seu itinerário.

"Três mil seiscentas vezes por hora, o Segundo
Sussura: Lembra bem! — Indo depressa embora,
Voz de inseto, Agora fala: sou Outrora
E suguei tua vida com meu bico imundo!

"Remember! Souviens-toi! Lembra bem, sumidouro!
(Minha garganta de metal é poliglota.)
Os minutos são a ganga, mortal idiota,
Que não deves largar sem extrair o ouro!

"O Tempo, lembra bem, joga com teimosia,
Ganha sem trapacear, toda vez! Amém.
O dia cai; a noite aumenta; lembra bem!
O abismo tem sede, a ampulheta esvazia.

"Logo virá a hora em que o Acaso, e mais
A Virtude, esta virgem casada contigo,
O próprio Remorso (ah! o último abrigo!)
Em que tudo dirá: Morre! Tarde demais!"


Charles Baudelaire

A Alma do Vinho

A alma do vinho assim cantava nas garrafas:
"Homem, ó desherdado amigo, eu te compús,
Nesta prisão de vidro e lacre em que me abafas,
Um cântico em que há só fraternidade e luz!
Bem sei quanto custa, na colina incendida,
De causticante sol, de suor e de labor,
Para fazer minha alma e engendrar minha vida;
Mas eu não hei de ser ingrato e corruptor,
Porque eu sinto um prazer imenso quando baixo
À guela do homem que já trabalhou demais,
E seu peito abrasante é doce tumba que acho
Mais propícia ao prazer que as adegas glaciais.
Não ouves retinir a domingueira toada
E esperanças chalrar em meu seio, febrís?
Cotovelos na mesa e manga arregaçada,
Tu me hás de bendizer e tu serás feliz:
Hei de acender-te o olhar da esposa embevecida;
A teu filho farei voltar a força e a cor
E serei para tão tenro atleta da vida
Como o óleo que os tendões enrija ao lutador.
Sobre ti tombarei, vegetal ambrosia,
Grão precioso que lança o eterno Semeador,
Para que enfim do nosso amor nasça a poesia
Que até Deus subirá como uma rara flor!"

 

Charles Baudelaire

O Relógio

Os chineses vêem as horas pelos olhos dos gatos.
Certo dia, um missionário, passeando no dO Relógioistrito de Nanquim,
notou que havia esquecido o relógio e perguntou as horas a um rapazinho.
Ao primeiro instante, o garoto do Celeste Império hesitou;
depois, pensando melhor, respondeu:
-Vou dizer.
Decorridos alguns momentos, reaparecia, segurando nos braços um gato,
muito gordo; e, fitando o animal, como se usa dizer, no branco do olho,
afirmou sem hesitação:
-Ainda não é exatamnente mmeio dia.
E era verdade.
Por mim, ao inclinar-me para a bela Felina, a de nome tão adequado,
aquela que é ao mesmo tempo a honra do seu sexo, o orgulho do meu
coração e o perfume do meu espírito,
-quer de noite, quer de dia, em plena luz ou na sombraopaca,
no fundo de seus olhos adoráveis
vejo sempre, nitidamente, a hora, sempre a mesma, uma hora vasta, solene,
grande como o espaço, sem divisões de
minutos nem de segundos, uma hora imóvel que não é marcada nos relógios,
e todavia leve como um suspiro, rápida como um olhar.
E, se algum importuno me viesse interromper enquanto o meu olhar repousa sobre
este delicioso relógio, se algum Gênio descortês
e intolerante, algum Demônio do contratempo me viesse dizer :
-"Que é que estás a mirar com tamanha atenção?
Que buscas nos olhos dessa criatura? Vês acaso neles a hora,
mortal prodígo e vagabundo?"
– eu responderia sem hesitar:-"Sim, vejo a hora: é a Eternidade."
Pois não é, senhora, que fiz um madrigal verdadeiramente
meritórioe tão cheio de ênfase quanto vós mesma?
Na verdade, tive tanto prazer em bordar esta preciosa galanteria
que não vos pedirei nada em troca.

Charles Baudelaire

El hombre y el mar

 

¡Hombre libre, tu siempre preferirás el mar!
La mar es el espejo en que tu alma se mira,
en su onda infinita eternamente gira,
y tu espíritu sabe lo amargo saborear.

Hundiéndote en su seno, desnudo para el viaje,
la acaricias con brazos y ojos; tu corazón
se distrae muchas veces de su propia canción
al escuchar la suya, indómita y salvaje.

Los dos sois tenebrosos y a la vez sois discretos:
hombre, nadie ha llegado al fondo de tu abismo;
¡oh mar!, nadie ha llegado a tu tesoro mismo;
¡con tan celoso afán guardáis vuestros secretos!

Y entre tanto que pasan siglos innumerables,
sin piedad y sin miedo uno y otro atacáis,
de tal modo la muerte y el combatir amáis,
¡oh eternos luchadores, oh hermanos implacables!

 

Charles Baudelaire

Recolhimento

Sê sábia, ó minha dor, e queda-te mais quieta.
Reclamavas a tarde; eis que ela vem descendo:
Sobre a cidade um véu de sombras se projeta,
A alguns trazendo a angústia, a paz a outros trazendo.

Enquanto dos mortais a multidão abjeta,
Sob o flagelo do prazer, algoz horrendo,
Remorsos colhe à festa e sôfrega se inquieta,
Dá-me, ó dor, tua mão; vem por aqui, correndo

Deles. Vem ver curvarem-se os anos passados
Nas varandas do céu, em trajes antiquados;
Surgir das águas a saudade sorridente;

O sol que numa arcada agoniza e se aninha,
E, qual longo sudário a arrastar-se no Oriente,
Ouve, querida, a doce noite que caminha.

 

Charles Baudelaire

Perfume Exótico

Quando, cerrando os olhos, numa noite ardente,
Respiro a fundo o odor dos teus seios fogosos,
Vejo abrirem-se ao longe litorais radiosos
Tingidos por um sol monótono e dolente.

Uma ilha preguiçosa que nos traz à mente
Estranhas árvores e frutos saborosos;
Homens de corpos nus, esguios, vigorosos,
Mulheres cujo olhar faísca à nossa frente.

Guiado por teu perfume a tais paisagens belas,
Vejo um porto a ondular de mastros e de velas
Talvez exaustos de afrontar os vagalhões,

Enquanto o verde aroma dos tamarineiros,
Que à beira-mar circula e inunda-me os pulmões,
Confunde-se em minha alma à voz dos marinheiros.

 

Charles Baudelaire

la beauté

A Beleza

Eu sou bela, ó mortais! como um sonho de pedra,
E meu seio, onde todos vem buscar a dor,
É feito para ao poeta inspirar esse amor
Mudo e eterno que no ermo da matéria medra.

No azul, qual uma esfinge, eu reino indecifrada;
Conjugo o alvor do cisne a um coração de neve;
Odeio o movimento e a linha que o descreve,
E nunca choro nem jamais sorrio a nada.

Os poetas, diante do meu gesto de eloquência,
Aos das estátuas mais altivas semelhantes,
Terminarão seus dias sob o pó da ciência;

Pois que disponho, para tais dóceis amantes,
De um puro espelho que idealiza a realidade.
O olhar, meu largo olhar de eterna claridade!

 

Fleurs du Mal, Charles Baudelaire

 

 

 

A que está sempre alegre

Teu ar, teu gesto, tua fronte
São belos qual bela paisagem;
O riso brinca em tua imagem
Qual vento fresco no horizonte.

A mágoa que te roça os passos
Sucumbe à tua mocidade,
À tua flama, à claridade
Dos teus ombros e dos teus braços.

As fulgurantes, vivas cores
De tua vestes indiscretas
Lançam no espírito dos poetas
A imagem de um balé de flores.

Tais vestes loucas são o emblema
De teu espírito travesso;
Ó louca por quem enlouqueço,
Te odeio e te amo, eis meu dilema!

Certa vez, num belo jardim,
Ao arrastar minha atonia,
Senti, como cruel ironia,
O sol erguer-se contra mim;

E humilhado pela beleza
Da primavera ébria de cor,
Ali castiguei numa flor
A insolência da Natureza.

Assim eu quisera uma noite,
Quando a hora da volúpia soa,
Às frondes de tua pessoa
Subir, tendo à mão um açoite,

Punir-te a carne embevecida,
Magoar o teu peito perdoado
E abrir em teu flanco assustado
Uma larga e funda ferida,

E, como êxtase supremo,
Por entre esses lábios frementes,
Mais deslumbrantes, mais ridentes,
Infundir-te, irmã, meu veneno!

 

Charles Baudelaire

Encontro de Rua

A rua num tumulto em torno de mim gritava. 

Alta, esguia, vestindo um luto majestoso 

linda mulher passou que, num gesto gracioso, 

a fímbria do vestido erguia e balançava. 

 

O andar ligeiro e nobre, a perna escultural, 

e eu sorvia, angustiado, em seus olhos sombrios 

negro céu que produz os temporais bravios, 

a doçura que encanta e o prazer que é fatal. 

 

Um clarão… logo após a morna obscuridade! 

Ó mulher cujo olhar me deu vida outra vez 

não mais te encontrarei senão na eternidade? 

 

Muito longe daqui! Tarde! Nunca, talvez! 

Pois não sei aonde vais; tu de mim te perdeste 

tu, que eu teria amado e que me compreendeste! 

 

Charles – Pierre Baudelaire 

A Uma Passante

A rua, em torno, era ensurdecedora vaia 

Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa, 

uma mulher passou, com sua mão vaidosa 

erguendo e balançando a barra alva da saia; 

 

Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina. 

Eu bebia, como um basbaque extravagante, 

no tempestuoso céu do seu olhar distante, 

a doçura que encanta e o prazer que assassina. 

 

Brilho… e a noite depois! – Fugitiva beldade 

de um olhar que me fez nascer segunda vez, 

não mais te hei de rever senão na eternidade? 

 

Longe daqui ! Tarde demais! Nunca talvez! 

Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste, 

tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste! 

 

Charles Pierre Baudelaire 

Tristezas da Lua

Hoje, a lua, a sonhar, mais pálida e mais fria 

tem, reclinada sobre os coxins siderais, 

o langor feminil de quem acaricia, i 

antes de adormecer, os seios virginais. 

Sobre o fofo cetim das nuvens, desmaiada, 

nos céus, passeando o olhar, vê surgirem visões, 

que argênteas, no palor da noite iluminada, 

ascendem para o azul, como alvas florações. 

Quando às vezes, na terra, amorosa e discreta, 

ela deixa cair uma gota de opala, 

uma lágrima irial, de tons de catassol, 

sobre a concha da mão, notâmbulo poeta 

toma-a, para, furtiva, ir piedoso guardá-la 

dentro do coração escondendo-a do sol. 

 

Charles – Pierre Baudelaire 

"Intimidades"

 

Tu és um céu de outono, alegre e cor de rosa! 

Mas a tristeza em mim, sombrio mar, avança 

e deixa, ao refluir, em minha boca ansiosa 

de um lodo escuro e amargo a cáustica lembrança. 

– A tua mão afaga o peito; o que ela quer 

minha amiga, é um lugar que tem sido saqueado 

pela garra acerada e o dente da mulher: 

até meu coração também foi devorado. 

Meu coração é templo onde a turba cultua 

todos os crimes vis e os vícios degradantes! 

– Um perfume te envolve a pele branca e nua! . . . 

Flagelo de minha alma, ó mulher, por que esperas? 

Com teus olhos de fogo, archotes flamejantes, 

calcina o que sobrou do repasto das feras! 

 

Charles – Pierre Baudelaire 

O convite à viagem

Minha doce irmã,
     Pensa na manhã
Em que iremos, numa viagem,
     Amar a valer,
     Amar e morrer
No país que é a tua imagem!
     Os sóis orvalhados
     Desses céus nublados
Para mim guardam o encanto
     Misterioso e cruel
     Desse olhar infiel
Brilhando através do pranto.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.

     Os móveis polidos,
     Pelos tempos idos,
Decorariam o ambiente;
     As mais raras flores
     Misturando odores
A um âmbar fluido e envolvente,
     Tetos inauditos,
     Cristais infinitos,
Toda uma pompa oriental,
     Tudo aí à alma
     Falaria em calma
Seu doce idioma natal.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.

     Vê sobre os canais
     Dormir junto aos cais
Barcos de humor vagabundo;
     É para atender
     Teu menor prazer
Que eles vêm do fim do mundo.
     — Os sangüíneos poentes
     Banham as vertentes,
Os canis, toda a cidade,
     E em seu ouro os tece;
     O mundo adormece
Na tépida luz que o invade.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.

 

Charles Baudelaire

Perfume Exótico

Quando, cerrando os olhos, numa noite ardente,
Respiro a fundo o odor dos teus seios fogosos,
Vejo abrirem-se ao longe litorais radiosos
Tingidos por um sol monótono e dolente.

Uma ilha preguiçosa que nos traz à mente
Estranhas árvores e frutos saborosos;
Homens de corpos nus, esguios, vigorosos,
Mulheres cujo olhar faísca à nossa frente.

Guiado por teu perfume a tais paisagens belas,
Vejo um porto a ondular de mastros e de velas
Talvez exaustos de afrontar os vagalhões,

Enquanto o verde aroma dos tamarineiros,
Que à beira-mar circula e inunda-me os pulmões,
Confunde-se em minha alma à voz dos marinheiros.

 

Charles Baudelaire

Embriaguem-se

É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.

Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.

E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vega, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão:

“É hora de embriagar-se”! Para “não serem os escravos martirizados do tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso” Com vinho, poesia ou virtude, a escolher.

Charles Baudelaire