Chamo-Te

Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.
Peço-Te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só de Teus olhares me purifique e acabe.
Há muitas coisas que não quero ver.
Peço-Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo.
E que o Teu reino antes do tempo venha
E se derrame sobre a Terra
Em Primavera feroz precipitado.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Os poetas

Solitários pilares dos céus pesados,
Poetas nus em sangue, ó destroçados
Anunciadores do mundo
Que a presença das coisas devastou.
Gesto de forma em forma vagabundo
Que nunca num destino se acalmou.

Sophia de Mello Breyner Andresen

O Jardim e a Noite

 
Atravessei o jardim solitário e sem lua,
Correndo ao vento pelos caminhos fora,
Para tentar como outrora
Unir a minha alma à tua,
Ó grande noite solitária e sonhadora.
Entre os canteiros cercados de buxo,
Sorri à sombra tremendo de medo.
De joelhos na terra abri o repuxo,
E os meus gestos dessa encantação,
Que devia acordar do seu inquieto sono
A terra negra canteiros
E os meus sonhos sepultados
Vivos e inteiros.
Mas sob o peso dos narcisos floridos
Calou-se a terra,
E sob o peso dos frutos ressequidos
Do presente,
Calaram-se os meus sonhos perdidos.
Entre os canteiros cercados de buxo,
Enquanto subia e caía a água do repuxo,
Murmurei as palavras em que outrora
Para mim sempre existia
O gesto dum impulso.
Palavras que eu despi da sua literatura,
Para lhes dar a sua forma primitiva e pura,
De fórmulas de magia.
Docemente a sonhar entra a folhagem
A noite solitária e pura
Continuou distante e inatingível
Sem me deixar penetrar no seu segredo
E eu senti quebrar-se, cair desfeita,
A minha ânsia carregada de impossível,
Contra a sua harmonia perfeita.
Tomei nas minhas mãos a sombra escura
E embalei o silêncio nos meus ombros.
Tudo em minha volta estava vivo
Mas nada pôde acordar dos seus escombros
O meu grande êxtase perdido.
Só o vento passou e quente
E à sua volta todo o jardim cantou
E a água do tanque tremendo
Se maravilhou
Em círculos, longamente.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Não me peçam razões

Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Nâo me peçam razões por que se entenda
A força da maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei;
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir;
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.

José Saramago

O mundo e o silêncio

Uma casa para eu ter a humildade de ser espaço
a líquida frescura duma jarra
um passo leve e certo em cada sombra
um ninho em cada ouvido
de doces abelhas cegas

Uma casa uma caixa de música e sossego
Um violão adormecido na doçura
Um mar longínquo à volta atrás do campo
Uma inundação de verdura e espessa paz
Uma repetida e vasta constelação de grilos
e os galos álacres do silêncio

Um mar de espuma e alegria obscura
um mar de espuma e alegria clara
entre o verde e a brisa

Na brancura dos quartos
a inocência poderá sonhar desnuda
os insetos poderão entrar
juntamente com as plantas e as aves
Uma longa asa passará
O mundo e o silêncio a mesma ave
e o mar
o mudo leão longínquo e fresco
faiscará entre o ver e as lâminas solares

António Ramos Rosa

Entre o verde e a brisa

Não vim embarcado não me encontrei
na rua
não nos vimos
não nos beijamos
nunca parti

Não sei que idade tenho

Quando havia antes um antigamente
havia uma esperança
agora no próprio coração da ilusão
onde a água limpa as pedras das ruínas
entre destroços límpidos
deito-me sobre a minha sombra e durmo
e durmo

Quando havia antes um amanhecer
à beira do abismo
agora no próprio coração do coração
durmo estrangulando um monstro inerme
um palhaço de palha seca e pálido
quando havia antes um caminho

Não houve nunca amigos nem, pureza
Nem carinhos de mãe salvam a noite
É preciso ir mais longe na incerteza
É preciso no silêncio não escutar

A manhã que eu procuro não foi sonhada
Uma árvore me ignora na raiz
Perfeitamente desesperado é o meu sonho
Os pássaros insultam-me na cama
Só com doidos com doidos amaria
perfeitamente presente na frescura
do mar

António Ramos Rosa

Cidades do Sul

Nas cidades do sul
há violência e há excesso,
de semente.
Estalam os rios e foge a água.
O corpo, encortiçado, racha.

Lendas vêm de há séculos assoreando
as margens.
E quando à boca de um poço vamos
provar o nosso eco,
águas puras irrompem,
noutra língua.

Maria Luiza Neto Jorge

Femina

Não lavei os seios

pois tinham o calor

da tua mão.

Não lavei as mãos

pois tinham os sons

do teu corpo.

 

Não lavei o corpo

pois tinha os rastros

dos teus gestos;

tinha também, o meu corpo

a sagrada profanação

do teu olhar

que não lavei.

 

Nem aqueles lençóis,

não os lavei,

nem os espelhos

que continuam

onde sempre estiveram:

 

porque eles nos viram

cúmplices, e a paixão,

no paraíso,

parece que era.

 

Lavei, sim,

lavei e perfumei

a alma, em jasmim,

que é tua, só tua,

para te esperar

como se nunca tivesses ido

a nenhum lugar:

 

donde apaguei

todas as ausências

que apaguei

ao teu olhar.

 

 

Soares Feitosa

Para atravessar contigo o deserto do mundo

 

Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei
Por ti deixei meu reino meu segredo

Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua

E ao descampado se chamava tempo
Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento.

Sophia de Mello B. Andresen

Canção cruel

 

Corpo de ânsia.

Eu sonhei que te prostava,

E te enleava

Aos meus músculos!

Olhos de êxtase,

Eu sonhei que em vós bebia

Melancolia

De há séculos!

Boca sôfrega,

Rosa brava

Eu sonhei que te esfolhava

Petala a pétala!

Seios rígidos,

Eu sonhei que vos mordia

Até que sentia

Vómitos!

Ventre de mármore,

Eu sonhei que te sugava,

E esgotava

Como a um cálice!

Pernas de estátua,

Eu sonhei que vos abria,

Na fantasia,

Como pórticos!

Pés de sílfide,

Eu sonhei que vos queimava

Na lava

Destas mãos ávidas!

Corpo de ânsia,

Flor de volúpia sem lei!

Não te apagues, sonho! mata-me

Como eu sonhei.

 

Jorge de Sena

Cântico

Num impudor de estátua ou de vencida,

coxas abertas, sem defesa… nua

ante a minha vigília, a noite, e a lua,

ela, agora, descansa, adormecida.

 

Dos seus mamilos roxo-azuis, em ferida,

meu olhar desce aonde o sexo estua.

Choro… e porquê? Meu sonho, irreal, flutua

sobre funduras e confins da vida.

 

Minhas lágrimas caem-lhe nos peitos…

enquanto o luar a numba, inerte, gasta

da ternura feroz do meu amplexo.

 

Cantam-me as veias poemas nunca feitos…

e eu pouso a boca, religiosa e casta,

sobre a flor esmagada do seu sexo.

 

José Régio

Loura

Eu descia o Chiado lentamente
Parando junto às montras dos livreiros
Quando passaste irônica e insolente
Mal pousando no chão os pés ligeiros.

O céu nublado ameaçava chuva,
Saía gente fina de uma igreja;
Destacavam no traje de viúva
Teus cabelos de um louro de cerveja.

E a mim, um desgraçado a quem seduzem
Comparações estranhas, sem razão,
Lembrou-me este contraste o que produzem
Os galões sobre os panos de um caixão.

Eu buscava uma rima bem intensa
Para findar uns versos com amor;
Olhaste-me com cega indiferença
Através do lorgnon provocador.

Detinham-se a medir tua elegância
Os dandies com aprumo e galhardia;
Segui-te humildemente e a distância
Não fosses suspeitar que te seguia.

E pensava de longe, triste e pobre,
Desciam pela rua umas varinas
Como podias conservar-te sobre
O salto exagerado das botinas.

E tu, sempre febril, sempre inquieta,
Havia pela rua uns charcos de água
Ergueste um pouco a saia sobre a anágua
De um tecido ligeiro e violeta.

Adorável! Na idéia de que agora
A branda anágua a levantasse o vento
Descobrindo uma curva sedutora,
Cada vez caminhava mais atento.

Mas súbito parei, sentindo bem
Ser loucura seguir-te com empenho,
A ti que és nobre e rica, que és alguém,
Eu que de nada valho e nada tenho.

Correu-me pelo corpo um calafrio,
E tive para o teu perfil ligeiro
Este olhar resignado do vadio
Que fita a exposição de um confeiteiro.

Vi perder-se na turba que passava
O teu cabelo de ouro que faz mal;
Não achei essa rima que buscava,
Mas compus este quadro natural.

Cesário Verde

Ausência

Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
Ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
Magoa, que se limita à alma, mas que não deixa,

Por isso, de deixar alguns sinais – um peso
Nos olhos, no lugar da tua imagem, e
Um vazio nas mãos, como se tuas mãos lhes
Tivessem roubado o tacto. São estas as formas
Do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
As coisas simples também podem ser complicadas,

Quando nos damos conta da diferença entre o sonho e a realidade.
Porém, é o sonho que me traz à tua memória; e a
Realidade aproxima-te de ti, agora que
Os dias que correm mais depressa, e as palavras

Ficam presas numa refracção de instantes,
Quando a tua voz me chama de dentro de
Mim – e me faz responder-te uma coisa simples,
Como dizer que a tua ausência me dói.

Nuno Júdice

Aquela cativa

Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que para meus olhos
Fosse mais formosa.

Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas,
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.

Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Para ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.

Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela enfim descansa
Toda a minha pena.
Esta é a minha cativa
Que me tem cativo,
E, pois nela vivo,
É força que viva.

 

Luis Vaz de Camões

Metodologia

Convoco os duendes da inquietação
e da alegria, urdindo um laborioso
rito circular, delicada teia iridiscente
de que, relutante, a luz se vá
pouco a pouco enamorando.

Palavras não as profiro
sem que antes as tenha encantado
de vagarosa ternura; mal esboçados,
gestos ou afagos, apenas me afloram
a hesitante extremidade dos dedos

que, aquáticos e transidos, estacam
no limiar surpreso do seu rosto.
Movimentos longos da tarde
e sussurros graves da noite
que tendessem para a imobilidade

e o silêncio, não seriam mais cautos
e aéreos. Quietas estátuas de cristal,
intensamente nos fitamos, enquanto
trémula, lenta e comburente,
a luz mais pura nos atravessa.

Rui Knopfli

Fascinação

Canta-lhe o vento as áreas que conhece,
E nenhuma perturba aquele olhar.
Nenhuma o transfigura ou adormece
E o tira de sentir e de fitar.

Terra de consciência iluminada,
Limpa na sua luz pensada e fria,
A celeste canção enluarada
Nenhuma paz humana lhe daria.

Não, porque o vento só conduz aladas
Forças que oscilam a raiz;
E aquele olhar quer descobrir paradas
Seivas da vida que a razão lhe diz.

Miguel Torga

Conheço o sal…

Conheço o sal da tua pele seca

Depois que o estio se volveu inverno

De carne repousada em suor nocturno.

Conheço o sal do leite que bebemos

Quando das bocas se estreitavam lábios

E o coração no sexo palpitava.

Conheço o sal dos teus cabelos negros

Os louros ou cinzentos que se enrolam

Neste dormir de brilhos azulados.

Conheço o sal que resta em minhas mãos

Como nas praias o perfume fica

Quando a maré desceu e se retrai.

Conheço o sal da tua boca, o sal

Da tua língua, o sal de teus mamilos,

E o da cintura se encurvando de ancas.

A todo o sal conheço que é só teu,

Ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,

Um cristalino pó de amantes enlaçados.

 

José Régio

Esperança

Tantas formas revestes, e nenhuma
Me satisfaz!
Vens às vezes no amor, e quase te acredito.
Mas todo o amor é um grito
Desesperado
Que apenas ouve o eco…
Peco
Por absurdo humano:
Quero não sei que cálice profano
Cheio de um vinho herético e sagrado.

Miguel Torga

Túmulo de Lorca

Em ti choramos os outros mortos todos
Os que foram fuzilados em vigílias sem data
Os que se perdem sem nome na sombra das cadeias
Tão ignorados que nem sequer podemos
Perguntar por eles imaginar seu rosto
Choramos sem consolação aqueles que sucumbem
Entre os cornos da raiva sob o peso da força

Não podemos aceitar. O teu sangue não seca
Não repousamos em paz na tua morte
A hora da tua morte continua próxima e veemente
E a terra onde abriram a tua sepultura
É semelhante à ferida que não fecha

O teu sangue não encontrou nem foz nem saída
De Norte a Sul de Leste a Oeste
Estamos vivendo afogados no teu sangue
A lisa cal de cada muro branco
Escreve que tu foste assassinado

Não podemos aceitar. O processo não cessa
Pois nem tu foste poupado à patada da besta
A noite não pode beber nossa tristeza
E por mais que te escondam não ficas sepultado

 

Sophia de Mello Breyner

Ouvindo Beethoven

Venham leis e homens de balanças,
mandamentos d’aquém e d’além mundo.
Venham ordens, decretos e vinganças,
desça em nós o juízo até ao fundo.

Nos cruzamentos todos da cidade
a luz vermelha brilhe inquisidora,
risquem no chão os dentes da vaidade
e mandem que os lavemos a vassoura.

A quantas mãos existam peçam dedos
para sujar nas fichas dos arquivos.
Não respeitem mistérios nem segredos
que é natural os homens serem esquivos.

Ponham livros de ponto em toda a parte,
relógios a marcar a hora exacta.
Não aceitem nem queiram outra arte
que a presa de registro, o verso acta.

Mas quando nos julgarem bem seguros,
cercados de bastões e fortalezas,
hão-de ruir em estrondo os altos muros
e chegará o dia das surpresas.

José Saramago

Elogios

Deitada, repousa a flor. Deitado, além, repousa o canto.
Lapido esmeraldas, derreto o ouro: e eis o meu canto.
Engasto esmeraldas: eis o meu canto.
O homem inclina-se para polir o canto como uma turqueza.

E o deus faz brilhar o escudo de plumas de quetzal.
Imitas o pássaro verde-azul, o pássaro de fogo.
Embriaga-se teu coração: absorve a flor da pintura, o canto pintado.

E abres agora as asas de quetzal.
Ondulas com tuas plumas de arco-íris, ó pássaro de
colo vermelho e plumagem cor de malva.

Bebe o mel. A grande flor perfumada apareceu na terra.

 

Herberto Helder

Redação

Uma senhora pediu-me
um poema de amor.
Não de amor por ela,
mas “de amor por amor”.
À parte aquelas
trivialidades “minha rosa”, “lua do meu céu interior”,
que eu podia eu dizer
para ela, a não destinatária,
que não fosse por ela?
Sem objecto, o poema
é uma redacção
dos 100 Modelos
de Cartas de Amor.

Alexandre O’Neill

Para atravessar contigo o deserto do mundo

 

Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei
Por ti deixei meu reino meu segredo

Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua

E ao descampado se chamava tempo
Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento.

Sophia de Mello B. Andresen

Luta de classes: O campesinato

A chave do campo está na mão das mulheres
que o lavraram, desfazendo os nós do inverno
com a exactidão da pá. Vi estas mulheres no
grande caminho da História, perdendo as suas
vidas em cada nova colheita. O sol tisnou
a sua pele; o frio enrugou os seus rostos. À
noite, quando o vento batia nas janelas
de madeira, os seus olhos atravessavam
a treva e perdiam-se em destinos que
não conheciam, como se tivessem outra
saída. Ouvi as suas queixas no murmúrio
das árvores que as abrigaram; e vi os
seus corpos deitados nas igrejas, sem
ninguém que os velasse, a caminho da vala
comum. Amei-as, sem que o soubessem;
e ouço o ruído das pás na terra, quando os
seus rostos me atravessam a memória,
e o inverno cai sobre a lama dos campos.

 

Nuno Júdice

O regresso

Como quem, vindo de países distantes fora de
si , chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho.

Entra então pela primeira vez na sua casa
e deita-se pela primeira vez na sua cama.
Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
cidades, estações do ano.
E come agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.

Manuel António Pina

De escadas insubmissas

De escadas insubmissas
de fechaduras alerta
de chaves submersas
e roucos subterrâneos
onde a esperança enlouqueceu
de notas dissonantes
dum grito de loucura
de toda a matéria escura
sufocada e contraída
nasce o grito claro

Não posso adiar o coração para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
Que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

 

António Ramos Rosa

Os cinco sentidos

 

São belas – bem o sei, essas estrelas
Mil cores – divinais têm essas flores;
Mas eu não tenho amor, olho para elas;

Em toda a natureza
Não vejo outra beleza
Senão a ti – a ti!

Divina – ai! sim, será a voz que afina
Saudosa – na ramagem densa, umbrosa.
Será; mas eu do rouxinol que trina
Não oiço a melodia,
Nem sinto outra harmonia
Senão a ti – a ti!

Respira – n’aura que entre as flores gira,
Celeste – incenso de perfume agreste.
Sei… não sinto: minha alma não aspira,
Não percebe, não toma
Senão o doce aroma
Que vem de ti – de ti!

Formosos – são os pomos saborosos,
É um mimo – de néctar o racimo:
E eu tenho fome e sede… sequiosos,
Famintos meus desejos
Estão… mas é de beijos,
E só de ti – de ti!

Macia – deve a relva luzidia
Do leito – se por certo em que me deito;
Mas quem, ao pé de ti, quem poderia
Sentir outras carícias,
Tocar noutras delícias
Senão em ti – em ti!

A ti! ai, a ti só os meus sentidos
Todos num confundidos,
Sentem, ouvem, respiram;

Em ti, por ti deliram.
Em ti a minha sorte,
A minha vida em ti;

E quando venha a morte,
Será morrer por ti.

Almeida Garrett

Os silêncios

 

Não entendo os silêncios
que tu fazes
nem aquilo que espreitas
só comigo

Se escondes a imagem
e a palavra
e adivinhas aquilo
que não digo

Se te calas
eu oiço e eu invento
Se tu foges
eu sei não te persigo

Estendo-te as mãos
dou-te a minha alma
e continuo a querer
ficar contigo

Maria Teresa Horta

Sacode as nuvens

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar.
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.

Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,

Mesmo que a minha voz queime o ar que respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Não sei como dizer-te que a minha voz te procura

Não sei como dizer-te que a minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente os teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
– eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
– E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
– não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim , te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço-

e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave-
qualquer coisa extraordinária.
Porque não sei dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.

 

Herberto Helder

A Demora

O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.

Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.

Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.

Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.

Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz
se vai despindo em ti.

O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.

Mia Couto

Memória Consentida

Neste lugar sem tempo nem memória,
nesta luz absoluta ou absurda,
ou só escuridão total, relances há
em que creio, ou se me afigura,
ter tido, alguma vez, passado

com biografia, onde se misturam
datas, nomes, caras, paisagens
que, de tão rápidas, me deixam
apenas a lembrança agoniada
de não mais poder lembrá-las.

Sobra, por vezes, um estilhaço
ou fragmento, como o latido
de um cão na tarde dolente
e comprida de uma remota infância.
Ou o indistinto murmúrio de vozes

junto de um rio que, como as vozes,
não existe já quando para ele
volvo, surpreso, o olhar cansado.
Insidiosas, rangem tábuas no soalho,
ou é o sussurro brando do vento

no zinco ondulado, na fronde umbrosa
dos eucaliptos de perfil no horizonte,
com o mar ao fundo. Que soalho,
de que casa, que vento em que paragens,
onde o mar ao longe que, entrevistos,

os não vejo já ou, sequer, recordo
na brevidade do instante cruel?
De que sonho, ou vida, ou espaço de outrem
provêm tais sombras melancólicas,
ferindo de indecifráveis avisos

este lugar em que, não sendo consentido
o coração, se não consentem tempo e memória?
Pausa ou pena, a seu oculto propósito há-de
sempre opor-se, lenta, a inexorável asfixia
desta luz absurda, ou só escuridão total.

 

Rui Knopfli

Balada de Sempre

Espero a tua vinda
a tua vinda,
em dia de lua cheia.

Debruço-me sobre a noite
a ver a lua a crescer, a crescer…

Espero o momento da chegada
com os cansaços e os ardores de todas as chegadas…

Rasgarás nuvens de ruas densas,
Alagarás vielas de bêbados transformadores.
Saltarás ribeiros, mares, relevos…
– A tua alma não morre
aos medos e às sombras!-

Mas…,
Enquanto deixo a janela aberta
para entrares,
o mar,
aí além,
sempre duvidoso,
desenha interrogações na areia molhada…

 

Fernando Namora

Começa a haver meia-noite

Começa a haver meia-noite, e a haver sossego,
Por toda a parte das coisas sobrepostas,
Os andares vários de acumulação da vida…
Calaram o piano no terceiro andar…
Não oiço já passos no segundo andar…
No rés-do-chão o rádio está em silêncio…

Vai tudo dormir…

Fico sozinho com o universo inteiro.
Não quero ir à janela:
Se eu olhar, que de estrelas!
Que grandes silêncios maiores há no alto!
Que céu anticitadino! –
Antes, recluso,
Num desejo de não ser recluso,
Escuto ansiosamente os ruídos da rua…
Um automóvel – demasiado rápido! –
Os duplos passos em conversa falam-me…
O som de um portão que se fecha brusco dói-me…

Vai tudo dormir…

Só eu velo, sonolentamente escutando,
Esperando
Qualquer coisa antes que durma
Qualquer coisa.

 

Álvaro de Campos

Pretextos Para Sair do Real

A uma luz perigosa como água
De sonho e assalto
Subindo ao teu corpo real
Recordo-te
E és a mesma
Ternura quase impossível
De suportar

Por isso fecho os olhos

(O amor faz-me recuperar incessantemente o poder da
provocação. É assim que te faço arder triunfalmente
onde e quando quero. Basta-me fechar os olhos)

Por isso fecho os olhos
E convido a noite para a minha cama
Convido-a a tornar-se tocante
Familiar concreta
Como um corpo decifrado de mulher

E sob a forma desejada
A noite deita-se comigo
E é a tua ausência
Nua nos meus braços

Experimento um grito
Contra o teu silêncio

Experimento um silêncio

Entro e saio
De mãos pálidas nos bolsos

Assobio às pequenas esperanças
Que vêm lamber-me os dedos

Perco-me no teu retrato
Horas seguidas

E ao trote do ciúme deito contas
Deito contas à vida.

 

Alexandre O’Neill

Poema

O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas
Sua passagem se confundirá
Como rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento
No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas
(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas
E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen

Um poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne.
Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
rios, a grande paz exterior das coisas,
folhas dormindo o silêncio
– a hora teatral da posse.

E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
Invade as casas deitadas nas noites
e as luzes e as trevas em volta da mesa
e a força sustida das coisas
e a redonda e livre harmonia do mundo.
-Em baixo o instrumento preplexo ignora
a espinha do mistério.

E o poema faz-se contra a carne e o tempo.

 

Herberto Helder

Três

Um
Foi grande o meu amor
não sei o que deu
quem inventou fui eu
fiz de você o sol
da noite primordial
e o mundo fora nós
se resumia a tédio e pó
quando em você tudo se complicou

Dois
Se você quer amar
não basta um só amor
não sei como explicar
um só é sempre demais
pra seres como nós
sujeitos a jogar
as fichas todas de uma vez
sem temer naufragar
não há lugar para lamúrias
essas não caem bem
não há lugar para calúnias
mas por que não
nos reinventar

Três
Eu quero tudo que há
O mundo e seu amor
Não quero ter que optar
Quero poder partir
Quero poder ficar
Poder fantasiar
Sem nexo e em qualquer lugar
Com o seu sexo
Junto ao mar

 

Antonio Cícero

Ausência

 

Um a um, vão-se-me os dias,
Dia a dia, eu vou com eles…
Olhos extintos, mãos frias,
Perpasso ao longo dos dias
Como sombra que repeles…

E porquê? Porque me deixas
Nesta frieza, em que forças
Nem tenho para erguer queixas
Cujo alívio me nem deixas,
Ou contra mim já não torças…?

Não me vês Tu sofrer tanto
Quanto gostas de me ver?
Ou não sei eu, por enquanto,
Valer-me de sofrer tanto
Para chegar a vencer?

No entanto, vão-se-me as horas
Num sofrer tudo o que passa,
Só porque Tu Te demoras
A atirar às minhas horas
Uns restos da Tua graça…

Levando os olhos lá cima,
Sondo esse abismo estrelado,
Baixo-os ao chão…, e o que anima
Esse abismo lá de cima
Anima a colma e o prado.

Ao Teu simples ígneo sopro,
Abrem-se os astros, as flores,
E as cavernas como o escopro…
Encapelam-se, ao Teu sopro,
Vento e mar com seus furores…

Só a mim não me aqueces
Com as bençãos do Teu bafo!
Só dum ser vivo Te esqueces,
E este ar, que já não aqueces,
Me não é ar, e eu abafo…

Fosse eu pedra bruta! Fosse
Uma pouca de água! Um bicho
Sem razão, feroz ou doce,
Que virias!, nem que eu fosse
Qualquer montinho de lixo…

Fosse eu terra…, e dera flor!
Fosse eu ar, mar…gozaria
No sol Teu próprio calor!
Que o céu dá sóis e o chão flor
Porque o Teu amor lhos cria…

Mas sou este ser humano
A quem deste alma, razão,
Coração, vontade…e o engano
De sonhar ser mais que humano,
Contra a humanal condição!

E é por ser mais, que me deixas
Na solidão em que estou?
Por ser Teu filho, me fechas
Assim só comigo, e deixas
Entregue ao não-ser que sou?

Não posso! Que farei eu,
Tua obra-prima falhada,
Que acusa quem ma escreveu
De lhe dar o que lhe deu
E a deixar não terminada?

Desde que Te amo, não sei
Com nada mais contentar-me!
Onde estarei? onde irei?
Desde que Te amo que sei
Que é tudo o mais vão alarme…

Corra que não corra o mundo,
Só sobre mim próprio giro
Se mais encontrar, ao fundo
Dos mil caminhos do mundo,
Que um eu contra quem me firo…

Qualquer jornada que faça,
Qualquer empresa que tente,
Se me falha a Tua graça,
Faça o que faça ou não faça,
Que faço que me contente?

Amar-me, já o não consigo;
Fugir-me a mim, não no alcanço;
Não suporto estar comigo!
Se consigo ou não consigo,
Da mesma maneira canso…

Toda a largueza do mundo
Não me cura a falta de ar!
Sufoco!, neste profundo
Buraco negro do mundo
Que só Tu vens alargar…

E Tu não vens! E há que dias,
Há que séculos, Te espero,
De olhos extintos, mãos frias,
Sem nada que me encha os dias
Senão frio e desespero!

Fervem-me no peito as queixas,
As blasfêmias, o clamor
Do abandono em que me deixas…
Mas gritos, blasfémias, queixas
Bem sabes que é tudo amor!

Bem sabes como é verdade
Que nada Te substitui,
Ou Te empana a claridade,
Em quem, por ver a Verdade,
Já tudo em volta lhe rui…

Ai, que os irmão me não creiam,
É de crer! pois lhes advém
Que soletrem mas não leiam,
E só creiam, ou não creiam,
Consoante lhes convém.

Mas Tu, que me vês por dentro
Como eles vêem por fora,
Tu, em cujo amor eu entro
Nu até alma, por dentro
Dum banho lustral de aurora.

Tu, – não! não podes deixar-me
Sem Ti, nem nada no mundo!
Para quê todo este alarme?
Mas como é que ousas deixar-me
Sequer um breve segundo?

Pois não vês que já pertences
Ao amor com que me enleias?
Não me enleies, ou não penses
Que eu, sim, mas Tu não pertences
Às nossas comuns cadeias!

Livra-me de Ti de vez,
Se Te não queres cativo
Do meu amor! Ou não vês
Que isto é nem morrer de vez
Nem, também, sentir-me vivo?

Em Ti, por Ti amo tudo!
Se Te vais e em vão Te chamo,
Fico cego, surdo, mudo…
Faltas-me e falta-me tudo,
Que afinal só a Ti amo!

Pois bem, deitar-me-ei por terra,
Nu no chão nu, sem conforto
Senão o cinto que enterra
Seus férreos dentes na terra
De minha carne e meu corpo.

Deitar-me-ei dias e noites,
Não provarei água ou pão,
Fustigar-me-ei com açoites,
Encherei dias e noites
Gritando a Tua traição.

Até que venhas! Até
Que, de novo, a Tua graça
Me dê calor, luz, ar, fé,
Me ressuscite! ou até
Tudo que sou se desfaça.

José Régio 

Mar desconhecido

Sinto viver em mim um mar ignoto,
E ouço, nas horas calmas e serenas,
As águas que murmuram, como em prece,
Estranhas orações intraduzíveis.

Ouço também, do mar desconhecido,
Nos instantes inquietos e terríveis,
Dos ventos o guaiar desesperado
E os soluços das ondas agoniadas.

Sinto viver em mim um mar de sombras,
Mas tão rico de vida e de harmonias,
Que dele sei nascer a misteriosa

Musica, que se espalha nos meus versos,
Essa música errante como os ventos,
Cujas asas no mar geram tormentas.

Augusto Frederico Schmidt

Oiço falar

Oiço falar da minha vocação
mendicante e sorrio. Porque não sei
se tal vocação não é apenas
uma escolha entre riquezas, como Keats
diz ser a poesia.

Desci à rua pensando nisto,
atravessei o jardim, um cão
saltava à minha frente,
louco com as folhas do outono
que principiara, e doiravam
o chão.

A música,
digamos assim,
a que toda a alma aspira,
quando a alma
aspira a ter do mundo o melhor dele,
corria à minha frente, subia
por certo aos ouvidos de deus
com a ajuda de um cão,
que nem sequer me pertencia.

Eugénio de Andrade

Quem me dera meu amor

Quem me dera, meu amor,
Contigo deixar a vida.
Que é tanta esp’rança perdida,
Que é tanta miséria e dor!
Deixar o mundo malvado
E repousar a teu lado –

Oh! minha amante divina! –
Na mesma cova esquecida,
Tendo à minha boca unida
Essa boca pequenina!…

Mário de Sá-Carneiro