O Sentido Simples das Coisas

Depois das folhas terem caído, regressamos
A um sentido simples das coisas. É como se
Tivéssemos chegado ao fim da imaginação,
Inanimados num inerte savoir.

É difícil até escolher o adjetivo
Para este frio vazio, esta tristeza sem causa.
A grandiosa estrutura tornou-se numa casa menor.
Nenhum turbante caminha através dos soalhos degradados.

A estufa nunca precisou tanto de tinta.
A chaminé tem cinquenta anos e está inclinada para um lado.
Falhou um esforço fantástico, uma repetição
Numa repetitividade de homens e moscas.

Contudo a ausência da imaginação tinha
Ela própria de ser imaginada. O lago grandioso,
O seu sentido simples, sem reflexos, folhas,
Lama, água como vidro sujo, expressando silêncio

De certo tipo, silêncio de um rato saindo para ver,
O lago grandioso e a sua imensidade de nenúfares, tudo isto
Tinha de ser imaginado como um conhecimento inevitável,
Exigido, como uma necessidade exige.

Wallace Stevens

Caminheiro

Sinto é um medo, um medo insuperável
Defronte das alturas misteriosas.
E dizer que me agradam andorinhas
No céu e do campanário o alto voo!

Caminheiro de outrora, cá me iludo
Pensando ouvir à borda do abismo
A pedra a ceder, a bola de neve,
O relógio batendo eternidade.

Se assim fosse! Mas não sou o peregrino
Que vem dos fólios antigos desbotados,
E o que em mim real canta é esta angústia:

Certo – desce uma avalancha das montanhas!
E toda a minha alma está nos sinos,
Só que a música não salva dos abismos!

Ossip Mandelstam

A MORTE É QUE ESTÁ MORTA

Para José Régio

A morte é que está morta.
Ela é aquela Princesa Adormecida
no seu claro jazigo de cristal.

Aquela a quem, um dia – enfim -, despertarás…

E o que esperavas ser teu suspiro final
é o teu primeiro beijo nupcial!

– Mas como é que eu te receava tanto
(no teu encantamento lhe dirás)
e como podes ser assim tão bela?!
Nas tantas buscas, em que me perdi,
vejo que cada amor tinha um pouco de ti…

E ela, sorrindo, compassiva e calma:

– E tu, por que é que me chamavas Morte?
Eu sou, apenas, tua Alma…

Mário Quintana

“Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir”

Invejo — mas não sei se invejo — aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer.

Que há(-de alguém) confessar que valha ou que sirva? O que nos sucedeu, ou sucedeu a toda a gente ou só a nós; num caso não é novi­dade, e no outro não é de compreender. Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações. Compreendo bem as bordadoras por mágoa e as que fazem meia porque há vida. Minha tia velha fazia paciências durante o infinito do serão. Estas confissões de sentir são paciências minhas. Não as interpreto, como quem usasse cartas para saber o destino. Não as ausculto, porque nas paciências as cartas não têm propriamente valia. Desenrolo-me como uma meada multicolor, ou faço comigo figuras de cordel, como as que se tecem nas mãos espetadas e se passam de umas crianças para as outras. Cuido só de que o polegar não falhe o laço que lhe compete. Depois viro a mão e a imagem fica diferente. E recomeço.

Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso. Crochet das coisas… Intervalo… Nada…
De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, e a compreensão profunda de estar sentindo… Uma inteligência aguda para me destruir, e um poder de sonho sofrego de me entreter… Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, como a um filho vivo… Sim, crochet…


Bernardo Soares, O livro do desassossego.