Sobre o mar…

“Sobre o mar, por toda a parte ao mesmo tempo, abrem-se flores de que creio ouvir o impulso dos caules a mil metros de profundidade. O oceano cospe a sua seiva em eclosões de espuma. Permaneci nos vestíbulos quentes e lodosos da terra, que me cuspiu da sua profundidade. E eis-me chegada. Vimos à superfície. Há espaço suficiente para que todo o oceano venha rebentar ao sol, para que cada parte de água despose a forma de ar e amadureça no seu contorno. Existe a minha que os olha. Eu sou flor. Todas as partes do meu corpo se abriram sob a força do dia, os meus dedos que se abrem da palma da minha mão, as minhas pernas, do meu ventre, e até à extremidade dos meus cabelos, a minha cabeça. Experimento a lassidão orgulhosa de ter nascido, de ter chegado ao termo deste nascimento. Antes de mim, não existia nada no meu lugar. Agora, existo no lugar do nada. É uma susessão difícil. Daí sem dúvida o sentimento de ser uma ladra do ar. Agora sabemos e sentimos o prazer em ter vindo ao mundo. Eu roubo o meu lugar ao ar,mas estou contente.Aí está. Ali estou. Estendo-me. Está agradável. Sou uma farinha ao sol.”

“Marguerite Duras” in vida Tranquila

Correspondências: Fernando Pessoa a Ofélia

Meu Bebezinho lindo:

Não imaginas a graça que te achei hoje à janella da casa de tua irmã! Ainda bem que estavas alegre e que mostraste prazer em me ver (Álvaro de Campos).

Tenho estado muito triste, e além d’isso muito cansado – triste não só por te não poder ver, como também pelas complicações que outras pessoas teem interposto no nosso caminho. Chego a crer que a influência constante, insistente, hábil d’essas pessoas; não ralhando contigo, não se oppondo de modo evidente, mas trabalhando lentamente sobre o teu espírito, venha a levar-te finalmente a não gostar de mim. Sinto-me já differente; já não és a mesma que eras no escriptorio. Não digo que tu própria tenhas dado por isso; mas dei eu, ou, pelo menos, julguei dar por isso. Oxalá me tenha enganado…

Olha, filhinha: não vejo nada claro no futuro. Quero dizer: não vejo o que vãe haver, ou o que vãe ser de nós, dado, de mais a mais, o teu feitio de cederes a todas as influencias de familia, e de em tudo seres de uma opinião contraria à minha. No escriptorio eras mais dócil, mais meiga, mais amorável.

Enfim…
Amanhã passo à mesma hora no Largo de Camões. Poderás tu apparecer à janella?
Sempre e muito teu…

Minha Mulher, A Solidão

Minha mulher, a solidão,
Consegue que eu não seja triste.
Ah, que bom é ao coração
Ter esse bem que não existe!

Recolho ao não ouvir ninguem,
Não sofro o insulto de um carinho
E falo alto sem que haja alguém:
Nascem-me os versos do caminho.

Senhor, se há bem que o céu conceda
Submisso à opressao do Fado,
Dá-me eu ser só — veste a seda –,
E fala só — leque animado.

 

Alberto Caeiro

O dia que Júpiter encontrou Saturno

– Quando a noite chegar cedo e a neve cobrir as ruas, ficarei o dia inteiro na cama pensando em dormir com você.
– Quando estiver muito quente, me dará uma moleza de balançar devagarinho na rede pensando em dormir com você.
– Vou te escrever carta e não mandar.
– Vou tentar recompor teu rosto sem conseguir.
– Vou ver Júpiter e me lembrar de você.
– Vou ver Saturno e me lembrar de você.
– Daqui a vinte anos voltarão a se encontrar.
– O tempo não existe.
– O tempo existe sim, e devora.
– Vou procurar teu cheiro no corpo de outra mulher. Sem encontrar, porque terei esquecido. Alfazema?
– Alecrim. Quando eu olhar a noite enorme do Equador, pensarei se tudo isso foi um encontro ou uma despedida.
– E que uma palavra ou um gesto, seu ou meu, seria suficiente para modificar nossos roteiros.

 Caio Fernando Abreu