O mar é longe, mas somos nós o vento…

O mar é longe, mas somos nós o vento;
e a lembrança que tira, até ser ele,
é doutro e mesmo, é ar da tua boca
onde o silêncio pasce e a noite aceita.
Donde estás, que névoa me perturba
mais que não ver os olhos da manhã
com que tu mesma a vês e te convém?
Cabelos, dedos, sal e a longa pele,
onde se escondem a tua vida os dá;
e é com mãos solenes, fugitivas,
que te recolho viva e me concedo
a hora em que as ondas se confundem
e nada é necessário ao pé do mar.

Pedro Tamen, in “Daniel na Cova dos Leões”

Ah, sim, a velha poesia…

Poesia, a minha velha amiga…
eu entrego-lhe tudo
a que os outros não dão importância nenhuma…
a saber:
o silêncio dos velhos corredores
uma esquina
uma lua
(porque há muitas, muitas luas…)
o primeiro olhar daquela primeira namorada
que ainda ilumina, ó alma,
como uma tênue luz de lamparina,
a tua câmara de horrores.
E os grilos?
Não estão ouvindo, lá fora, os grilos?
Sim, os grilos…
Os grilos são os poetas mortos.
Entrego-lhes grilos aos milhões um lápis verde
um retrato
amarelecido um velho ovo de costura
os teus pecados
as reivindicações as explicações – menos
o dar de ombros e os risos contidos
mas
todas as lágrimas que o orgulho estancou na fonte
as explosões de cólera
o ranger de dentes
as alegrias agudas até o grito
a dança dos ossos…
Pois bem,
às vezes
de tudo quanto lhe entrego, a Poesia faz uma coisa que
parece nada tem a ver com os ingredientes mas que
tem por isso mesmo um sabor total: eternamente esse
gosto de nunca e de sempre.

Mario Quintana

Mar

Na melancolia de teus olhos
Eu sinto a noite se inclinar
E ouço as cantigas antigas
Do mar.

Nos frios espaços de teus braços
Eu me perco em carícias de água
E durmo escutando em vão
O silêncio.

E anseio em teu misterioso seio
Na atonia das ondas redondas
Náufrago entregue ao fluxo forte
Da morte.

Vinicius de Moraes

Matinal

 

Entra o sol, gato amarelo, e fica
à minha espreita, no tapete claro.
Antes de abrir os olhos, sei que o dia
Virá olhar-me por detrás das árvores.

Ah! sentir-me ainda vivo sobre a face da Terra
enquanto a vida me devora…
Me espreguiço, entredurmo… O anjo da luz espera-me
Como alguém que vigiasse uma crisálida.

Pé ante pé, do leito, aproxima-se um verso
para a canção de despertar;
os ritmos do tráfego vibram como uma cigarra,

a tua voz nas minhas veias corre,
e alguns pedaços coloridos do meu sonho
devem andar por esse ar, perdidos…

Mario Quintana

Canção da Nuvem e do vento

 

Medo da nuvem
Medo medo
Medo da nuvem que vai crescendo
Que vai se abrindo
Que não se sabe
O que vai saindo
Medo da nuvem Nuvem Nuvem
Medo do vento
Medo Medo
Medo do vento que vai ventando
Que vai falando
Que não se sabe
O que vai dizendo
Medo do vento Vento Vento
Medo do gesto
Mudo
Medo da fala
Surda
Que vai movendo
Que vai dizendo
Que não se sabe…
Que bem se sabe
Que tudo é nuvem que tudo é vento
Nuvem e vento Vento Vento!

Mário Quintana

Saudação a Walt Whitman

No meu verso canto comboios, canto automóveis, canto vapores,

Mas no meu verso, por mais que o ice, ha só ritmos e ideias,

Não há ferro, aço, rodas, não há madeiras, nem cordas,

Não há a realidade da pedra mais nula da rua,

Da pedra que por acaso ninguém olha ao pisar

Mas que pode ser olhada, pegada na mão, pisada,

E os meus versos são como ideias que podem não ser compreendidas.

O que eu quero não é cantar o ferro: é o ferro.

O que eu penso é dar só a vida do aço — e não o aço —

O que me enfurece em todas as emoções da inteligência

É não trocar o meu ritmo que imita a água cantante

Pelo frescor real da água tocando-me nas mãos,

Pelo som visível do rio onde posso entrar e molhar-me,

Que pode deixar o meu fato a escorrer,

Onde me posso afogar, se quiser,

Que tem a divindade natural de estar ali sem literatura.

Merda! Mil vezes merda para tudo o que eu não posso fazer.

Que tudo, Walt — […] ? — que é tudo, tudo, tudo?

Todos os raios partam a falta que nos faz não ser Deus

Para ter poemas escritos a Universo e a Realidades por nossa carne

E ter ideias-coisas e o pensamento Infinito!

Para ter estrelas reais dentro do meu pensamento-ser

Nomes-números nos confins da minha emoção-a-Terra.

 

Alvaro de Campos

Saudação

Oh geração dos afetados consumados
e consumadamente deslocados,
Tenho visto pescadores em piqueniques ao sol,
Tenho-os visto, com suas famílias mal-amanhadas,
Tenho visto seus sorrisos transbordantes de dentes
e escutado seus risos desengraçados.
E eu sou mais feliz que vós,
E eles eram mais felizes do que eu;
E os peixes nadam no lago
e não possuem nem o que vestir.

Ezra Pound

Flores do Mal: LXXXII – Obsessão

Bosques, encheis de susto como as catedrais,
Como os órgãos rugis; e em corações malditos,
Quartos de terno luto e choros ancestrais,
Todos sentem ecoar vossos fúnebres gritos.
Eu te odeio, oceano! e com os teus tumultos,
Já que és igual a mim! Pois este riso amargo
Do homem a soluçar, todo sombras e insultos,
Eu o escuto no riso enorme do mar largo.
Como serias bela, ó noite sem estrelas,
Que os astros falam sempre claro em sua luz!
Busco o infinito negro e os precipícios nus!
Porém as trevas são elas próprias as telas,
Em que surgem, a vir de meu olho, aos milhares,
Seres vindos do além de rostos familiares.

Charles Baudeleire

Flores do Mal: LXXXI – “Spleen”

E quando pesa o céu, tal tampa grave e baça,
No espírito a gemer e em que só o tédio existe,
E do horizonte enfim todo o círculo abraça,
Vertendo um dia negro e mais que as noites triste;
E quando a terra muda em úmida enxovia,
Em que a esperança é assim morcego pelos murros,
Onde sua asa vibra em medrosa agonia,
Roçando a testa por forros os mais impuros;
E quando a chuva alonga estas linhas tamanhas,
Sempre a imitar as grades de vasta cadeia,
E o calado tropel das infames aranhas
Em nosso coração estende a sua teia,
Os sinos se dispõem com loucura a saltar,
Lançando para o céu o seu vagido horrente,
Espírito que vai errante, sem ter lar,
E começa a gemer tão obstinadamente.
– E os carros funerais, sem música ou tambor,
Lentos passam por mim e a esperança destarte
Vencida, chora; e a angústia estorce-se de dor,
Sobre o meu crânio implanta o seu negro estandarte.

Charles Baudeleire

Flores do Mal: XVIII – O Ideal

 

Pois não serão jamais belezas de vinhetas,
Produto que numa era epicúrea nasceu.
E pés com borzeguins, dedos com castanhetas,
Que irão satisfazer um sonho como o meu.
Eu deixo a Gavarni, o poeta das anemias,
Seu sonoro tropel de graças de hospital,
Pois não posso encontrar entre estas rosas frias
Uma flor que semelhe o meu vermelho ideal.
Só quer meu coração (que a noite se abisme!)
Lady Machbeth, essa alma espojada no crime,
Sonho de Ésquilo aberto em furiosas manhãs;
Ou bem tu, grande Noite e michelangesca,
Pacífica a torcer, estranhamente fresca,
As graças cujo molde é a boca dos Titãs.

Charles Baudeleire

Flores do Mal: V

 

Amo a recordação daqueles dias nus
Em que Febo inundava as estátuas de luz,
Quando homem e mulher na sua agilidade
Folgavam sem engano e sem a ansiedade.
A afagar-lhes a espinha um sol pleno de amor
Da máquina mais nobre excitava o vigor.
CibeleC, que era então de seio generoso,
Nos seus filhos não via o que fosse oneroso.
Mas, loba, o coração todo ternuras plenas
Aleitava o universo com tetas morenas.
Ágil no seu vigor, o homem em boa lei
Podia envaidecer-se ao chamarem-no rei;
Frutos puros de ultraje e virgens feridas
De carne lisa e firme evocando mordidas.
Hoje, o Poeta quando almeja imaginar
Tal grandeza nativa onde vá contemplar
A nudez da mulher perto da nudez do homem
Sente arrepios negros, os que a alma consomem.
A este negro painel, uma imagem de espanto.
Ah, monstruosidades que esperam um manto!
Troncos dignos de máscaras, ridículos, desnudos,
Pobres corpos torcidos, flácidos ou ventrudos,
E que o Útil, este deus sereno e sem cansaço
Logo à infância envolveu em tristes cueiros de aço.

Charles Baudeleire

Flores do Mal: III – Elevação

 

Por sobre os pantanais, por sobre os descampados,
Por sobre o éter e o mar, por sobre o bosque e o monte,
E muito além do sol, muito além do horizonte,
Para além dos confins dos longes estrelados,
Meu espírito, vais, todos os céus te movem,
Como um bom nadador cais em delíquio na onda,
Sulcas alegremente a imensidão redonda,
Levado por volúpia indizível e jovem.
Bem longe deves voar destes miasmas tão baços;
Vai te purificar por um ar superior,
E bebe, como um puro e divino licor,
O claro fogo que enche os céus lúcidos e serenos!
Este cujo pensar, como a andorinha, muda
Para o céu da manhã num vôo ascensional,
– Que plana sobre a vida a entender afinal
A linguagem da flor e da matéria muda!

Charles Baudeleire

Confissão

Na quermesse da miséria,
fiz tudo o que não devia:
se os outros se riam, ficava séria;
se ficavam sérios, me ria.

(Talvez o mundo nascesse certo;
mas depois ficou errado.
Nem longe nem perto se encontra o culpado!)

De tanto querer ser boa,
misturei o céu com a terra,
e por uma coisa à toa
levei meus anjos à guerra.

Aos mudos de nascimento
fui perguntar minha sorte.
E dei minha vida, momento a momento,
por coisas da morte.

Pus caleidoscópio de estrêlas,
entre cegos de ambas as vistas.
Geometrias imprevistas,
quem se inclinou para vê-las?

(Talvez o mundo nascesse certo;
mas evadiu-se o culpado.
Deixo meu coração – aberto,
à porta do céu – fechado.)

Cecilia Meireles

8

Não te importes. Não te importes…

Na verdade, tu vens como eu te queria inventar:
e de braço dado desceremos por entre pedras e flores.
Posso levar-te ao colo, também,
pois na verdade estás mais leve que uma criança.

– Tanta terra deixaste porém sobre o meu peito!
irás dizendo, sem queixa,
apenas como recordação.

E eu, como recordação, te direi:
– Pesaria tanto quanto o coração que tiveste,
o coração que herdei?

Ah, mas que palavras podem os vivos dizer aos mortos?

E hoje era o teu dia de festa
Meu presente é buscar-te:
Não para vires comigo:
para te encontrares com os que, antes de mim,
vieste buscar, outrora.
Com menos palavras, apenas.
Com o mesmo número de lágrimas.
Foi lição tua chorar pouco,
para sofrer mais.

Aprendi-a demasiadamente.
Aqui estamos, hoje.
Com este dia grave, de sol velado.
De calor silencioso.
Todas as estátuas ardendo.
As folhas, sem um tremor.

Não tens fala, nem movimento nem corpo.
E eu te reconheço.

Ah, mas a mim, a mim.
Quem sabe se me poderás reconhecer!

Cecilia Meireles

Canção do Amor-Perfeito

O tempo seca a beleza.
seca o amor, seca as palavras.
Deixa tudo solto, leve,
desunido para sempre
como as areias nas águas.

O tempo seca a saudade,
seca as lembranças e as lágrimas.
Deixa algum retrato, apenas,
vagando seco e vazio
como estas conchas das praias.

O tempo seca o desejo
e suas velhas batalhas.
Seca o frágil arabesco,
vestígio do musgo humano,
na densa turfa mortuária.

Esperarei pelo tempo
com suas conquistas áridas.
Esperarei que te seque,
não na terra, Amor-Perfeito,
num tempo depois das almas.

Cecilia Meireles

Desenho leve

Via-se morrer o amor
de braços abertos

Uma espuma azul andava
nas areias desertas

Nos galhos frescos das árvores,
recentemente cortadas,
Meninas todas de branco
se balançavam
O eco partia o barulho
de suas risadas

Via-se morrer o amor
de mãos estendidas

Uma lua sem memória
pelas águas transparentes
arrastava seus vestidos

Via-se morrer o amor
de solidões cercado

Via-se e tinha-se pena
sem se poder fazer nada…

E era uma tarde de lua
com o vento pelas estradas
esquecidas

E ao longe riam-se as crianças
No princípio do mundo
no reino da infância

Cecilia Meireles

Coração de Pedra

Oh, quanto me pesa
este coração, que é de pedra!
Este coração que era de asas
de música e tempo de lágrimas.

Mas agora é sílex e quebra
qualquer dura ponta de seta.

Oh, como não me alegra
ter este coração de pedra!

Dizei por que assim me fizestes,
vós todos a quem amaria,
mas não amarei, pois sois estes
que assim me deixastes, amarga,
sem asas, sem música e lágrimas,

assombrada, triste e severa
e com meu coração de pedra!

Oh, quanto me pesa
ver meu próprio amor que se quebra!
O amor que era mais forte e voava
mais que qualquer seta!

Cecilia Meireles


Soneto XCV

OS QUE se amam como nós? Busquemos
As antigas cinzas do coração queimado
E ali que tombem um por um nossos beijos
Até que ressuscite a flor desabitada.
Amemos o amor que consumiu seu fruto
E desceu á terra com rosto e poderio:
Tu e eu somos a luz que continua,
Sua inquebrantável espiga delicada.
Ao amor sepultado por tanto tempo frio,
Por neve e primavera, por esquecimento e outono,
Acerquemos a luz de uma nova maça,
Do frescor aberto por uma nova ferida,
Como o amor antigo que caminha em silêncio
Por uma eternidade de bocas enterradas.

Pablo Neruda

A tua voz na primavera

Manto de seda azul, o céu reflete
Quanta alegria na minha alma vai!
Tenho os meus lábios úmidos: tomai
A flor e o mel que a vida nos promete!

Sinfonia de luz meu corpo não repete
O ritmo e a cor dum mesmo beijo… olhai!
Iguala o sol que sempre às ondas cai,
Sem que a visão dos poentes se complete!

Meus pequeninos seios cor-de-rosa,
Se os roça ou prende a tua mão nervosa,
Têm a firmeza elástica dos gamos…

Para os teus beijos, sensual, flori!
E amendoeira em flor, só ofereço os ramos,
Só me exalto e sou linda para ti!

Florbela Espanca

Soneto XCIV

SE MORRO sobrevive-me com tanta força pura
Que despertes a fúria do pálido e do frio,
De sul a sul levanta teus olhos indeléveis,
De sol a sol que soe tua boca de guitarra.
Não quero que vacilem teu riso nem teus passos,
Não quero que pereça minha herança de alegria,
Não chames a meu peito, estou ausente.
Vive em minha ausência como numa casa.
É uma casa tão grande a ausência
Que passaras nela através dos muros
E penderás os quadros no ar.
É uma casa tão transparente a ausência
Que eu sem vida te verei viver
E se sofres, meu amor, morrerei outra vez.

Pablo Neruda

Soneto XCIII

SE ALGUMA VEZ, teu peito se detém,
Se algo deixa de andar ardendo por tuas veias,
Se tua voz em tua boca se vai sem palavra,
Se tuas mãos se esquecem de voar e dormem.
Matilde, amor, deixa teus lábios entreabertos
Porque esse último beijo deve durar comigo,
Deve ficar imóvel para sempre em tua boca
Para que assim também me acompanhe em minha morte.
Morrei beijando tua louca boca fria
Abraçando o cacho perdido de teu corpo,
E buscando a luz de teus olhos fechados.
E assim quando a terra receber nosso abraço
Iremos confundidos numa única morre
A viver para sempre de um beijo a eternidade.

Pablo Neruda

Soneto XCII

AMOR MEU se morro e tu não morres,
Amor meu, se morres e não morro,
Não demos á dor mais território:
Não há extensão como a que vivemos.
Pó no trigo, areia nas areias,
O tempo, a água errante, o vento vago
Nos transportou como grão navegante.
Podemos não encontrar no tempo.
Esta campina em que nos achamos,
Oh pequeno infinito! Devolvemos.
Mas este amor, amor, não terminou,
E assim como não teve nascimento
Morte não tem, é como um longo rio,
Só muda de terras e de lábios.

Pablo Neruda

Soneto XCI

A IDADE nos cobre como a garoa,
Interminável e árido é o tempo,
Uma pluma de sal toca teu rosto,
Uma goteira corroeu minha roupa:
O tempo não distingue entre minhas mãos
Ou um vôo de laranjas nas tuas:
Fere com neve ou enxadão a vida:
A vida tua que é a vida minha.
A vida minha que te dei se enche
De anos, como o volume de um cacho.
Regressarão as uvas á terra.
E ainda lá embaixo o tempo segue sendo,
Esperando, chovendo sobre o pó,
Ávido de apagar até a ausência.

Pablo Neruda

Pequenos Poemas – Paulo Leminski

não discuto
com o destino

o que pintar
eu assino

*

a palmeira estremece
palmas pra ela
que ela merece

*

pelos caminhos que ando
um dia vai ser
só não sei quando

*

noite alta lua baixa
pergunte ao sapo
o que ele coaxa

*

Inverno
É tudo o que sinto
Viver
É sucinto

*

tudo claro
ainda não era o dia
era apenas o raio

*

rio do mistério
que seria de mim
se me levassem a sério?

 

*

Razão de Ser

 

Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?

Paulo Leminski

É tão suave

 

É tão suave a fuga deste dia,

Lídia, que não parece, que vivemos.

Sem dúvida que os deuses

Nos são gratos esta hora,

 

Em paga nobre desta fé que temos

Na exilada verdade dos seus corpos

Nos dão o alto prêmio

De nos deixarem ser

 

Ricardo Reis

Se sou alegre ou sou triste?…

Se sou alegre ou sou triste?…

Francamente, não o sei.

A tristeza em que consiste?

Da alegria o que farei?

 

Não sou alegre nem triste.

Verdade, não sou o que sou.

Sou qualquer alma que existe

E sente o que Deus fadou.

 

Afinal, alegre ou triste?

Pensar nunca tem bom fim…

Minha tristeza consiste

 

Em não saber bem de mim…

Mas a alegria é assim…

 

Fernando Pessoa

Tudo que sinto, tudo quanto penso

Tudo que sinto, tudo quanto penso,

sem que eu o queira se me converteu

numa vasta planície, um vago extenço

onde há só nada sob o nulo céu.

 

Não existo senão para saber

que não existo, e, como a recordar,

vejo boiar a inércia do meu ser

no meu ser sem inércia, inútil mar.

 

Sargaço fluído de uma hora incerta,

quem me dará que o tenha por visão?

Nada, nem o que tolda a descoberta

como o saber que existe o coração.

 

Fernando Pessoa

Consideração do Poema

 

Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.

Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se incorporam
ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.
São todos meus irmãos, não são jornais
nem deslizar de lancha entre camélias:
é toda a minha vida que joguei.

Estes poemas são meus. É minha terra
e é ainda mais do que ela. É qualquer homem
ao meio-dia em qualquer praça. É a lanterna
em qualquer estalagem, se ainda as há.
– Há mortos? há mercados? há doenças?
É tudo meu. Ser explosivo, sem fronteiras,
por que falsa mesquinhez me rasgaria?
Que se depositem os beijos na face branca, nas principiantes rugas.
O beijo ainda é um sinal, perdido embora,
da ausência de comércio,
boiando em tempos sujos.

Poeta do finito e da matéria,
cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,
boca tão seca, mas ardor tão casto.
Dar tudo pela presença dos longínquos,
sentir que há ecos, poucos, mas cristal,
não rocha apenas, peixes circulando
sob o navio que leva esta mensagem,
e aves de bico longo conferindo
sua derrota, e dois ou três faróis,
últimos! esperança do mar negro.
Essa viagem é mortal, e começa-la.
Saber que há tudo. E mover-se em meio
a milhões e milhões de formas raras,
secretas, duras. Eis aí meu canto.

Ele é tão baixo que sequer o escuta
ouvido rente ao chão. Mas é tão alto
que as pedras o absorvem. Está na mesa
aberta em livros, cartas e remédios.
Na parede infiltrou-se. O bonde, a rua,
o uniforme de colégio se transformam,
são ondas de carinho te envolvendo.

Como fugir ao mínimo objeto
ou recusar-se ao grande? Os temas passam,
eu sei que passarão, mas tu resistes,
e cresces como fogo, como casa,
como orvalho entre dedos,
na grama, que repousam.

Já agora te sigo a toda parte,
e te desejo e te perco, estou completo,
me destino, me faço tão sublime,
tão natural e cheio de segredos,
tão firme, tão fiel… Tal uma lâmina,
o povo, meu poema, te atravessa.

Carlos Drummond de Andrade

Os Ombros Suportam o Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade

Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão
Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Carlos Drummond de Andrade

Reconhecimento do amor

Amiga, como são desnorteantes
os caminhos da amizade.
Apareceste para ser o ombro suave
onde se reclina a inquietação do forte
(ou que forte se pensava ingenuamente).
Trazias nos olhos pensativos
a bruma da renúncia:
não querias a vida plena,
tinhas o prévio desencanto das uniões para toda a vida,
não pedias nada,
não reclamavas teu quinhão de luz.

E deslizavas em ritmo gratuito de ciranda.
Descansei em ti meu feixe de desencontros
e de encontros funestos.
Queria talvez – sem o perceber, juro –
sadicamente massacrar-te
sob o ferro de culpas e vacilações e angústias que doíam
desde a hora do nascimento,
senão desde o instante da concepção em certo mês perdido na História,
ou mais longe, desde aquele momento intemporal
em que os seres são apenas histórias não formuladas
ao caos universal.

Como nos enganamos fugindo ao amor!
Como o desconhecemos, talvez com receio de enfrentar
sua espada coruscante, seu formidável
poder de penetrar o sangue e nele imprimir
uma orquídea de fogo e lágrimas.
Entretanto, ele chegou de manso e me envolveu
em docura e celestes amavios.
Não queimava, não siderava; sorria.
Mal entendi, tonto que fui, esse sorriso.
Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amor
que trazias para mim e que teus dedos confirmavam
ao se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro,
o Outro que eu me supunha, o Outro que te imaginava,
quando – por esperteza do amor – senti que éramos um só.

Amiga, amada, amada amiga, assim o amor
dissolve o mesquinho desejo de existir em face do mundo
com olhar pervagante e larga ciência das coisas.
Já não defrontamos o mundo: nele nos diluímos,
e a pura essência em que nos tarnsmutamos dispensa
alegorias, circunstâncias, referências temporais,
imaginações oníricas,
o vôo do Pássaro Azul, a aurora boreal,
as chaves de ouro dos sonetos e dos castelos medievos,
todas as imposturas da razão e da experiência,
para existir em si e por si,
a revelia de corpos amantes,
pois já nem somos nós, somos o número perfeito:
UM.

Levou tempo, eu sei, para que o Eu renunciasse
à vacuidade de persistir, fixo e solar,
e se confessasse jubilosamente vencido,
até respirar o júbilo maior da integração.
Agora, amada minha para sempre,
nem olhar temos de ver nem ouvidos de captar
a melodia, a paisagem, a transparência da vida,
perdidos que estamos na concha ultramarina de amar.

Carlos Drummond de Andrade

Apelo a meus dessemelhantes em favor da paz

Ah, não me tragam originais
para ler, para corrigir, para louvar
sobretudo, para louvar.
Não sou leitor do mundo nem espelho
de figuras que amam refletir-se
no outro à falta de retrato interior.
Sou o velho Cansado
que adora o seu cansaço e não o quer
submisso ao vão comércio da palavra.
Poupem-me, por favor ou por desprezo,
se não querem poupar-me por amor.
Não leio mais, não posso, que este tempo
a mim distribuído
cai do ramo e azuleja o chão varrido,
chão tão limpo de ambição
que minha só leitura é ler o chão.
Nem sequer li os textos das pirâmides
os textos dos sarcófagos,
estou atrasadíssimo nos gregos,
não conheço os Anais de Assurbanipal,
como é que vou –
mancebos,
senhoritas
– chegar à poesia de vanguarda
e às glórias de 2.000, que telefonam?
Passam gênios talvez entre as acácias,
sinto estátuas futuras se moldando
sem precisar de mim
que quando jovem (fui-o a.C., believe or not)
nunca pulei muro de jardim
para exigir do morador tranquilo
a canonização do meu estilo.
Sirvam-se de exonerar este macróbio
do penoso exercício literário.
Não exijam prefácios e posfácios
ao ancião que mais fala quando cala.
Brotos de coxa flava e verso manco,
poetas de barba-colar e velutínea
calça puída, verde: tá!
Outoniços, crepusculinos, matronas, contumazes:
tá!
O senhor saíu. Hora que volta? Nunca.
Nunca de corvo, nunca de São-Nunca.
Saiu pra não voltar.
Tudo esqueceu: responder
cartas; sorrir
cumplicimente; agradecer
dedicatórias; retribuir
boas-festas; ir ao coquetel e à noite
de autógrafos-com-pastorinhas.
Ficou assim: o cacto de Manuel
é uma suavidade perto dele.
Respeitem a fera. Triste, sem presas, é fera.
Na jaula do mundo passeia a pata aplastante.
cuidado com ela!
Vocês, garotos de colégio, não perguntem ao poeta
quando nasceu.
Ele não nasceu.
Não vai nascer mais.
Desistiu de nascer quando viu que o esperavam gsrotos de colégio de lápis em punho
com professores na retaguarda comandando: Cacem o urso-polar,
tragam-no vivo para fazer uma conferência.
Repórteres de vespertinos, não tentem entrevistá-lo.
Não lhe, não me peçam opinião
que é impublicável qualquer que seja o fato do dia
e contraditória e louca antes de formulada.
Fotógrafos: não adianta
pedir pose junto ao oratório de Cocais
nem folheando o álbum de Portinari
nem tomando banho de chuveiro.
Sou contra Niepce, Daguerre, contra principalmente minha imagem.
Não quero oferecer minha cara como verônica nas revistas.
Quero a paz das estepes
a paz dos descampados
a paz do Pico de Itabira quando havia Pico de Itabira
a paz de cima da Agulhas Negras
a paz de muito abaixo da mina mais funda e esboroada de Morro Velho
a paz
da
paz.

Carlos Drummond de Andrade

Chamo-Te

Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.
Peço-Te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só de Teus olhares me purifique e acabe.
Há muitas coisas que não quero ver.
Peço-Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo.
E que o Teu reino antes do tempo venha
E se derrame sobre a Terra
Em Primavera feroz precipitado.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Os poetas

Solitários pilares dos céus pesados,
Poetas nus em sangue, ó destroçados
Anunciadores do mundo
Que a presença das coisas devastou.
Gesto de forma em forma vagabundo
Que nunca num destino se acalmou.

Sophia de Mello Breyner Andresen

O Jardim e a Noite

 
Atravessei o jardim solitário e sem lua,
Correndo ao vento pelos caminhos fora,
Para tentar como outrora
Unir a minha alma à tua,
Ó grande noite solitária e sonhadora.
Entre os canteiros cercados de buxo,
Sorri à sombra tremendo de medo.
De joelhos na terra abri o repuxo,
E os meus gestos dessa encantação,
Que devia acordar do seu inquieto sono
A terra negra canteiros
E os meus sonhos sepultados
Vivos e inteiros.
Mas sob o peso dos narcisos floridos
Calou-se a terra,
E sob o peso dos frutos ressequidos
Do presente,
Calaram-se os meus sonhos perdidos.
Entre os canteiros cercados de buxo,
Enquanto subia e caía a água do repuxo,
Murmurei as palavras em que outrora
Para mim sempre existia
O gesto dum impulso.
Palavras que eu despi da sua literatura,
Para lhes dar a sua forma primitiva e pura,
De fórmulas de magia.
Docemente a sonhar entra a folhagem
A noite solitária e pura
Continuou distante e inatingível
Sem me deixar penetrar no seu segredo
E eu senti quebrar-se, cair desfeita,
A minha ânsia carregada de impossível,
Contra a sua harmonia perfeita.
Tomei nas minhas mãos a sombra escura
E embalei o silêncio nos meus ombros.
Tudo em minha volta estava vivo
Mas nada pôde acordar dos seus escombros
O meu grande êxtase perdido.
Só o vento passou e quente
E à sua volta todo o jardim cantou
E a água do tanque tremendo
Se maravilhou
Em círculos, longamente.

Sophia de Mello Breyner Andresen

A sesta

O vento cheio de ideias vãs
pôe-se a pensar em outras coisas…
O cão que ao mormaço repousa
fareja o ar morno. As venezianas
listram o silêncio, enquanto em torno
o frescor das jarras e das louças
espera… enquanto, da parede, olha-me
o gelo do relógio
e um cheiro insistente de maçãs
convida-me
como se eu não estivesse deliciosamente morto e de sapatos sobre
os arabescos da colcha.

Mário Quintana

O olhar

O último olhar do condenado não é nublado sentimentalmente por lágrimas
nem iludido por visões quiméricas.
O último olhar do condenado é nítido como uma fotografia:
vê até a pequenina formiga que sobe acaso pelo rude braço do verdugo,
vê o frêmito da última folha no alo daquela árvore, além…
Ao olhar do condenado nada escapa, como ao olhar de Deus
– um porque é eterno,
o outro porque vai morrer.
O olhar do poeta é como o olhar de um condenado…
como o olhar de Deus…

Mário Quintana

Data e dedicatória

Teus poemas, não os dates nunca… Um poema
Não pertence ao Tempo… Em seu país estranho,
Se existe hora, é sempre a hora extrema
Quando o Anjo Azrael nos estende ao sedento
Lábio o cálice inestinguível…
Um poema é de sempre, Poeta:
O que tu fazes hoje é o mesmo poema
Que fizeste em menino,
É o mesmo que,
Depois que tu te fores,
Alguém lerá baixinho e comovidamente,
A vivê-lo de novo…
A esse alguém,
Que talvez nem tenha ainda nascido,
Dedica, pois, teus poemas.
Não os dates, porém:
As almas não entendem disso…

Mário Quintana

Astrologia

Minha estrela não é a de Belém:
A que, parada, aguarda o peregrino.
Sem importar-se com qualquer destino
A minha estrela vai seguindo além…

– Meu Deus, o que é que esse menino tem? –
Já suspeitavam desde eu pequenino.
O que eu tenho? É uma estrela em desatino…
E nos desentendemos muito bem!

E quanto tudo parecia a esmo
E nesses descaminhos me perdia
Encontrei muitas vezes a mim mesmo…

Eu temo é uma traição do instinto
Que me liberte, por acaso, um dia
Deste velho e encantado Labirinto.

Mário Quintana